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O PAPALAGUI

O PAPALAGUI

O PAPALAGUI

Erich Scheurmann


 


Discursos de Tuiavii


Chefe de tribo de Tiavéa


nos mares do Sul


 


O PAPALAGUI


 


Recolhidos por


Erich Scheurmann


 


Tradução de


Luiza Neto Jorge


 


Ilustrações de Joost Swarte


 


EDIÇÕES ANTÍGONA


LISBOA - 1998


 


«Papalagui - assim os Samoanos chamam aos brancos, e assim Erich Scheurmann chamou à crítica da civilização ocidental posta na boca do chefe samoano Tuiavii que registou um êxito editorial estrondoso. Seduzindo milhares de leitores, tornou-se um autêntico best-seller e livro de cabeceira de certa cena dita alternativa, sobretudo no seu país de origem. Publicado em 1920, na Alemanha, o livro encontrou os primeiros leitores num país ainda ávido de matar saudades do arquipélago de Samoa, cuja parte ocidental tinha sido uma colónia alemã antes de ficar sob a tutela da Nova Zelândia nesse mesmo ano de 1920, até adquirir a independência em 1962. (...)


(...) o Papalagui não pode ser visto isoladamente. Insere-se numa tradição literária secular e numa mitologia de vigor excepcional: o sonho do paraíso terrestre. Este sonho fixa-se no século XVII nos mares do Sul que começam então a ser explorados sistematicamente. Tudo ali se procura, naquelas regiões longínquas do Pacífico: um clima feliz, uma natureza generosa onde sobrevive o 'bom selvagem' de Rousseau, inocente e nu, libertado das pressões do dia-a-dia e sem necessidade de trabalhar.»


 


Ellen Heinemann, in «Diário de Notícias», 1-I-1984


 


 


Sobre JOOST SWARTE:


 


Autor de banda desenhada, ultrapassa largamente esse campo. A sua marca inconfundível tem aparecido em capas de discos, pacotes de cigarros, cartazes, capas de revistas, livros infantis, etc.; é influenciado pela chamada linha clara e por Hergé, mas o seu estilo, muito próprio, passa por cima de todas as influências. Holandês, goza, contudo, do maior prestígio em toda a Europa.


 


Í N D I C E


 


 


Introdução


 


De como o Papalagui cobre as carnes com inúmeros panos e esteiras


 


Das arcas de pedra, das gretas de pedra, das ilhas de pedra e do que entre elas há


 


Do metal redondo e do papel forte


 


As muitas coisas tornam o Papalagui mais pobre


 


O Papalagui nunca tem tempo


 


O Papalagui tornou Deus mais pobre


 


O Grande Espírito pode mais do que a máquina


 


Das profissões do Papalagui e da confusão que daí resulta


 


Do lugar onde se simula a vida e dos muitos papéis


 


A grave doença de estar sempre a pensar


 


O Papalagui quer arrastar-nos para as suas trevas


 


 


****


 


 


Introdução


 


O 'Papalagui» - ou seja o Branco, o Senhor - é esse o nome dado aos discursos do chefe de tribo Tuiavii de Tiavéa, nos mares do Sul.


Tuiavii munca teve intenção de publicar esses discursos na Europa, nem sequer de os mandar imprimir; destinavam-se unicamente aos seus compatriotas polinésios. Se eu, apesar disso, transmito aos leitores europeus os discursos desse indígena, sem que ele o saiva e certamente contra sua vontade, é porque estou convencido de que nos vale a pena, a nós, homens brancos e esclarecidos, ter conhecimento do modo como um indivíduo ainda intimamente ligado à natureza nos vê a nós e à nossa cultura. Através dos seus olhos descobrimos a nossa própria imagem, e isso com uma simplicidade que já perdemos. Os leitores particularmente fanáticos da nossa civilização irão decerto achar a sua maneira de ver ingénua, e até mesmo pueril, ou parva; no entanto, mais do que uma fase de Tuiavii deixará pensativo o leitor mais modesto, pois a sabedoria de Tuiavii não emana de um saber erudito, mas é mais uma inocência de fonte divina.


 


Representam estes discursos um apelo aos povos dos mares do Sul para que quebrem todos os elos com os povos esclarecidos do continente europeu. Tuiavii, depreciador da Europa, acalentava a profunda convicção de que o pior erro cometidos pelos seus antepassados fora o de crer que a luz da Europa lhes trazia a felicidade. Como aquela virgem de Fagaza que do alto dos rochedos expulsou o primeiro missionário com seu leque: «Fora daqui, demónio malfazejo!», também ele via na Europa o negro demónio, o princípio destruidor de que devia proteger-se, se quisesse conservar a sua inocência.


Quando conheci Tuiavii, vivia ele, pacificamente, isolado do mundo europeu na longínqua ilhota de Upolu, pertencente ao grupo de Samoa, na aldeia de Tiavéa, da qual era o senhor e o chefe de tribo mais proiminente. A primeira impressão que dava era a de um gigante enorme e benévolo. Tinha quase dois metros de altura e uma robustez excepcional. A voz, pelo contrário, estava impregnada de ternura e meiguice como a de uma mulher. Os seus grandes olhos escuros e cavados, sombreados de espessas sobrancelhas, tinham algo de fascinante e de parado. Mas quando lhe dirigíamos a palavra, brilhavam calorosamente, traindo uma alma límpida e boa.


Quanto ao rosto, Tuiavii em nada se distinguia dos seus irmãos indígenas. Bebia o seu Kava (1), ia de manhã e à tarde ao loto (2), comia bananas, taros, inhames, e respeitava todos os usos e costumes da sua terra natal. Só os seus confidentes sabiam o que lhe fermentava no espírito, sempre em busca de mais luz, quando ele se deixava ficar deitado sobre a esteira de sua casa, de olhos semicerrados numa espécie de devaneio.


Enquanto que o indígena vivia em geral como uma criança, apenas sob o império dos sentidos, inteiramente no presente e sem tomar consciência de si mesmo nem do que de perto ou de longe o rodeava, Tuiavii, esse, era um ser fora do normal. Dominava, de longe, os seus semelhantes, porque tinha a consciência de ser, essa força interior que acima de tudo nos distingue das tribos primitivas.


Foi provavelmente devido a essa sua natureza excepcional que Tuiavii sentiu desejo de conhecer a longíqua Europa; ainda ele frequentava a escola missionária dos maristas e já expressava esse ardente desejo; tal voto, contudo, só viria a realizar-se na idade adulta. Juntando-se a um grupo que viajava através do continente, preparando a «Volkerschau» (3), essa criatura sedenta de experiências visitou, um após outro, todos os países europeus e assim adquiriu conhecimentos precisos sobre o modo de vida e a cultura desses países. Tive, mais de uma vez, ocasião de me espantar com a precisão dos seus conhecimentos, no respeitante a coisas aparentemente insignificantes. Tuiavii tinha um apuradíssimo dom de observação, observação essa que era sempre neutral e isenta de preconceitos. Nada o faria cegar, nem afastar-se da verdade. Ele via, por assim dizer, o ser em si, muito embora em toda e qualquer reflexão, nunca se desviasse do seu próprio ponto de vista.


Embora eu tivesse vivido mais de um ano a seu lado - era membro da comunidade da sua aldeia - Tuiavii só se abriu comigo quando consegui abstrair-se por completo, ou até esquecer, o Europeu que eu era, ou seja, quando nos tornámos amigos, quando ele se convenceu de que eu atingiria a necessária maturidade para compreender a sua sabedoria simples e que não iria rir-me dela (o que jamais fiz). Só então é que ele me leu alguns fragmentos das notas que tomara. Lia-mas sem ênfase e sem esforço oratório, como se o que tinha para dizer fosse de certo modo histórico. Mas foi precisamente essa maneira de ler que a mim me fez sentir tanto mais puras e claras as suas palavras, e me deu vontade de as passar para o papel.


 


Só muito mais tarde é que Tuiavii me passou as suas notas e me permitiu que as traduzisse para alemão, tradução essa que, segundo ele cria, iria servir unicamente para comentários pessoais e nunca como um fim em si. Todos estes discursos são apenas fragmentos, esboços. Ele não queria iniciar a sua «obrade missão» na Polinésia - era assim que lhe chamava - sem que a matéria dessas reflexões estivesse perfeitamente ordenada no seu espírito e absolutamente clara. Fui forçado a deixar a Oceânia antes de ele ter partido em viagem de missão.


Apesar da preocupação que tive em traduzir o texto original do modo mais fiel possível e de me não ter permitido mudar, nem ao de leve, a ordem dos assuntos tratados, apesar disso, reconheço que o carácter intuitivo e o lado directo do seu discurso perderam muito da sua intensidade. Aqueles que sabem das dificuldades que há em traduzir para alemão uma língua primitiva e em recriar as suas expressões ingénuas sem lhes dar um ar banal e insonoso, de boamente me perdoarão.


Acha Tuiavii, esse insular sem cultura, que todas as conquistas culturais do Europeu não passam de erros, de becos sem saída. Isto poderia parecer presunção, se não fosse ele expor tudo com uma maravilhosa simplicidade, espelho de um coração humilde.


É certo que põe os seus compatriotas em guarda e que apela para a sua capacidade de se não deixarem fascinar pelo Branco; fá-lo, porém, com a voz da aflição, testemunhando assim que o seu zelo missionário é fruto do seu amor e não do seu ódio ao homem. «Julgais que nos trazeis a luz», dizia-me ele no nosso último encontro, «mas, na verdade, gostaríeis de nos atrair para as vossas trevas». Encara as coisas e os acontecimentos da vida com a boa fé e o amor à verdade de uma criança e, fazendo-o, esbarra com contradições e descobre profundas carências morais, as quais enumera e rememora, adicionando-as à sua experiência. Não consegue entender em que é que consiste o grande valor da cultura europeia, se esta afasta o homem de si mesmo e o torna falso, desnaturado, mau. Principiando por assim dizer pela pele, pelo nosso aspecto exterior, a enumerar as nossas conquistas, designando-as com a primeira palavra que lhe ocorre, de um modo perfeitamente antieuropeu e sem o mínimo respeito, vai-nos revelando o teatro um tanto limitado do nosso próprio ser, a pontos de nos levar a pensar se será o autor, se a peça de teatro que é risível.


É, a meu ver, messa franqueza ingénua e nessa falta de respeito, que para nós, Europeus, reside o valor dos discursos de Tuiavii e a razão de ser da sua publicação. A guerra mundial (4) tormou-nos cépticos perante nós próprios; também nós começamos a interrogar-nos sobre o verdadeiro conteúdo das coisas, a pôr em dúvida a possibilidade de realizar o nosso ideal no seio desta cultura. Não nos consideremos, pois, demasiado cultos e desçamos, por uma vez, das alturas do nosso espírito até ao modo simples de ver e de pensar deste insular dos mares do Sul que, liberto ainda do fardo da instrução, e ainda autêntico na sua maneira de sentir e de olhar, nos ajuda a entender como perdemos o sentido sagrado do homem criando ídolos sem vida.


 


 


Erich Scheurmann


 


 


(1) Bebida popular de Samoa, preparada com as raízes do arbusto de Kava.


(2) Serviço divino.


(3) Apresentação ao Imperador da Alemanha dos seus súbditos do ultramar.


(4) 1914-18.


 


 


****


 


De como o Papalagui cobre as carnes


com enúmeros panos e esteiras


 


O Papalagui esforça-se o mais possível por cobrir as suas carnes. «O homem só existe realmente como homem acima do pescoço; quanto ao corpo e aos membros, não passam de carne», eis o que me disse um Branco muito respeitado e tido por muito sábio. Achava ele que só se deve levar em consideração a parte do corpo onde reside o espírito e bem assim todos os bons e maus pensamentos: ou seja, a cabeça. O Branco deixa de bom grado a cabeça descoberta e, em rigor, também as mãos. No entanto, cabeça e mãos mais não são do que carne e ossos. Aquele que deixa ver as carnes não pode ter a pretensão de ser consideradopessoa de bons costumes.


Quando um mancebo faz de uma donzela sua mulher, desconhece sempre se esta o enganou, pois nunca antes lhe viu o corpo (1). Ainda que seja bela como a mais bela das taopoú (2), sempre uma rapariga deverá tapar o corpo, para que ninguém o veja nem sinta prazer em vê-lo.


Tudo quanto se refere à carne é pecado. Assim fala o Papalagui. Com efeito, segundo o seu modo de ver, só o espírito é grande. O braço que, pronto a desferir, se ergue à luz do sol, é uma seta do pecado. O peito palpitando sob a vaga da respiração é a aljava do pecado. Os membros com que a virgem da aldeia dança para nós uma siva (3) são pecadores. Até mesmo aquelas partes com que se fazem os filhos, para maior alegria da vasta terra, são pecado. Tudo quanto é carne, é pecado. Em cada tendão há um pérfido veneno que se transmite de homem para homem. O espectáculo da carne basta, só por si, para envenenar quem o presencie, para o intoxicar, corromper e tornar tão desprezível como aquele que expõe a sua carne. Eis o que proclamam as sagradas leis morais do homem branco.


É por essa razão que o corpo do Papalagui está, da cabeça aos pés, coberto de tecidos, pêlos e panos tão cingidos e grossos que jamais olhar humano ou raio de sol poderá atravessá-los; tão cingidos, que o corpo se lhe torna pálido, branco e depauperado como as flores que crescem no mais recôndito da floresta virgem.


 


Dixai agora, avisados irmãos desta muitas ilhas, que vos descreva o peso que cada Papalagui carrega sobre o corpo. Por baixo de tudo, uma fina pele branca, feita de fibras de uma planta e chamada pele de cima, envolve o corpo nu. Deitam-na ao ar e deixam-na cair de cima para baixo sobre a cabeça, o peito e os braços, até às coxas. Segue-se, enfiada de baixo para cima pelas pernas e as nádegas, até ao umbigo, uma pele a que chamam pele de baixo. Estas duas peles são cobertas por uma terceira, mais grossa, tecida com os pêlos de um animal lanígero de quatro patas, especialmente criado para esse efeito. Esta última pele constitui o «pano» (4) propriamente dito. É composto, na maior parte das vezes, por três partes, uma que cobre a parte superior do corpo, a outra a parte média e a terceira as nádegas e as pernas. Estas três partes estão presas umas às outras por conchas (5) e atilhos feitos com a seiva seca da árvore da borracha (6), de modo que parecem formar uma só peça. Este pano é geralmente cinzento, como a lagoa durante a estação das chuvas; não deve ser de cor viva, excepto a parte média do pano dos homens que gostem de dar que falar, dos que muito cortejam as mulheres.


Por fim, cobre-se os pés com uma pele macia, e depois com uma pele muito dura. A pele macia é geralmente elástica e adapta-se bem ao pé, o que não é de modo algum o caso da pele dura. Esta é tirada da pele de um animal robusto, pele essa que se mergulha em água, se raspa à navalha, se bate e se expõe ao sol até ela endurecer por completo. O Papalagui confecciona com esta pele uma espécie de canoa de bordos levantados, e suficientemente grande para que lá caiba um pé. Faz uma para o pé esquerdo e outra para o pé direito. Prendem-se e atam-se estas canoas para os pés com cordas e ganchos, de modo a que os pés repousem num estojo rígido, como o búzio em sua concha. O Papalagui usa estas peles nos pés desde o nascer ao pôr-do-sol, leva-as quando vai malaga (7), quando vai dançar e até mesmo quando faz muito calor, como por exemplo depois de uma chuvada tropical.


Como isto é contra a natureza - e o Branco dá-se contra isso! - como isto dá cabo dos pés e os faz cheirar mal, e como, de facto, a maior parte dos pés europeus não é capaz de suster-se nem de trepar a uma palmeira, o Papalagui tenta disfarçar a sua loucura cobrindo a pele, já de si vermelha, desse animal, com uma grande porção de lama e esfrega-a durante muito tempo até fazê-la brilhar, brilho esse que cega os olhos e os leva a desviarem-se.


Houve uma vez na Europa um Papalagui que se tornou muito conhecido e que muita gente acorria a ver, porque ele dizia; «Não é nada bom trazer nos pés peles assim tão apertadas e pesadas; andai mas é de pés descalços, ao ar livre, quando o orvalho da noite cobre a erva, e nunca doença alguma entrará convosco». Era um homem muito são e muito sábio; mas troçaram dele e depressa o esqueceram.


Tal como o homem, também a mulher tem o corpo e as ancas enroladas em muitos panos e esteiras. Devido aos cordões, a sua pele está coberta de cicatrizes e esfoladelas. Os seios tornaram-se-lhe moles e perderam o leite, por causa da pressão de uma esteira que vai do pescoço até ao baixo-ventre e se prende à frente, no peito, e também nas costas, esteira essa que espinhas de peixe, arames e cordões tornam muito dura. Assim, a maior parte das mães dá a seus filhos leite contido num rolo de vidro fechado em baixo e munido em cima de um mamilo artificial. E também não é o seu próprio leite que elas lhes dão, mas o leite de uns horríveis animais vermelhos e cornudos, o qual lhes é tirado com toda a força das quatro tetas que possuem no baixo-ventre.


Ps panos das mulheres e das raparigas são, de resto, mais finos que os dos homens e podem ser coloridos e berrantes. Além disso, o pescoço e os braços podem ter mais carne à mostra do que os dos homens. É no entanto de bom tom que uma rapariga se cubra com muitas peles; dizem então as pessoas com complacência: «É púdica», o que para eles significa: respeita o que mandam os bons costumes.


 


Por isso é que eu nunca entendi porque é que as mulheres e as raparigas têm direito a deixar ver a carne do pescoço e das costas durante grandes fonos (8) e festins, sem que tal seja vergonha. Mas o que realça o carácter solene dos festejos talvez seja o facto de tudo o que até ali não era permitido, o ser agora, justamente.


Os homens é que têm sempre o pescoço e as costas muito tapados. Um alii (9) usa, do pescoço até aos peitos, um pedaço de pano caiado, do tamanho de uma folha de taro.Por cima disso, coloca um aro alto, igualmente branco, o qual enrola à volta do pescoço. Passa, através deste aro, um bocado de pano colorido, dá-lhe um nó como os que prendem os barcos, fura-o com um prego de oiro ou uma pérola de vidro e deixa isso tudo dependurado sobre o escudo do peito. Muitos Papalaguis usam igualmente aros caiados nos punhos, mas nunca nos tornozelos.


Esse escudo do peito e esses aros caiados são para ele importantíssimos. Nunca um Papalagui se apresentará sem este adorno diante de uma mulher, e muito menos se o aro tiver perdido o brilho e a brancura. É por isso que muitos aliis altamente colocados mudam todos os dias de escudo do peito e de aros caiados.


Enquanto que a mulher possui inúmeros panos de festa de todas as cores, os quais dão para encher vários baús, e gasta os seus pensamentos a ver se sabe que pano lhe agrada mais pôr hoje ou amanhã, e se este deverá ser curto ou comprido, falando também com muito amor da espécie de efeite que nele irá pregar, o homem, esse, só possui, na maior parte das vezes, um único trajo de festa, e quase nunca fala dele. É o que se chama trajo de pássaro, ou seja, um pano muito preto que termina em ponta, nas costas, como o rabo de um papagaio dos bosques (10). Esse trajo de gala obriga a usar, igualmente, peles brancas à volta das mãos, e peles à volta de cada um dos dedos, tão apertadas que o sangue ferve e aflui ao coração. Por isso os homens de bom senso podem permitir-se não as enfiar, contentando-se em segurar na mão tais peles ou de as prender no pano, à altura dos peitos.


Quando um homem ou uma mulher deixa a sua cabana e sai para a rua, cobre-se ainda com um outro pano mais amplo, que é grosso ou fino conforme o sol brilha ou não. Cobrem também a cabeça, os homens, com um vaso preto, teso, arredondado e oco, semelhante ao telhado das nossas casas de Samoa, e as mulheres, com grandes entrançados de vime ou cestas viradas às avessas, nos quais prendem flores que nunca murcham, penas, pedaços de pano, pérolas de vidro e toda a espécie de ornamentos. Parece a tuiga (11) de uma topoú na dança da guerra, mas esta é muito mais bonita e não corre o perigo de cair da cabeça durante a dança, ou quando há vendaval. Os homens brandem esses tectos de cabana para cumprimentarem as pessoas que encontram, ao passo que as mulheres apenas inclinam o fardo que trazem à cabeça um tudo-nada para a frente, como um bote mal carregado.


Só à noite, quando vai deitar-se na sua esteira, é que o Papalagui tira todos aqueles panos; mas logo se envolve num outro, esse único, aberto do lado dos pés, que deixa a descoberto. As raparigas e as mulheres usam geralmente um pano de noite ricamente decorado à roda do colo, mas só raramente se mostram assim. Mas o Papalagui se deita na esteira, logo se cobre até à cabeça com as penas tiradas da barriga de um grande pássaroe envoltas num grande pano, para não caírem e voarem em todos os sentidos.


 


Essas penas fazem o Papalagui transpirar e dão-lhe a ilusão de estar deitado ao sol, mesmo quando este não brilha. Porque o Papalagui não presta grande atenção ao sol verdadeiro.


É claro que, assim, o corpo do Papalagui se torna branco, macilento e não reflecte alegria. As mulheres, sobretudo as raparigas, tomam sempre cuidado em proteger a pele, em evitar que avermelhe quando a luz é mais forte e, sempre que estão ao sol, hasteiam, para sua defesa, um grande tecto por cima da cabeça. Como se a pálida cor da lua fosse mais bonita do que a luz do sol! Mas o Papalagui gosta de arvorar, em todos os domínios, um saber e uma lei lá a seu modo. Acha bonito o nariz que tem, pontiagudo como um dente de tubarão; o nosso, sempre redondo e mole, declara-o feio e disforme, ao passo que para nós é precisamente o contrário!


Como o corpo das mulheres e das raparigas anda sempre tapado, os homens e os adolescentes ardem em desejo de ver as suas carnes: o que é muito natural. Pensam nisso noite e dia e falam muito das formas do corpo das mulheres e das raparigas, e sempre como se o que é belo e natural fosse um grande pecado e só pudesse ser apreciado nos sítios mais escuros. Se eles deixassem ver abertamente as suas carnes, já eram capazes de pensar noutras coisas; já não espreitariam as raparigas, nem diriam palavras impúdicas quando passa alguma.


Mas a carne é pecado, obra do aitu (12). Poderá haver, amados irmãos meus, mais estúpido pensar? A crermos no que diz o Branco, devíamos desejar, tal como ele, que a nossa carne fosse dura como a rocha vulcânica e desprovida do seu belo calor interno! Ora o que nós devemos é regozijar-nos pelo facto de a nossa carne ainda poder dialogar com o sol, e de podermos mover as nossas pernas como o cavalo selvagem, pois que ninhum pano as entrava, pele alguma sobrecarrega os nossos pé, e nem sequer temos de cuidar em não deixar cair o que nos cobre a cabeça. Regozijamo-nos à vista da virgem que mostra o seu corpo em plena luz do sol e da lua. O Branco, crendo-se obrigado a muito cobrir-se para esconder a sua vergonha, é parvo, é cego, é insensível à verdadeira alegria.


 


(1) Nota de Tuiavii: mesmo mais tarde, só muito raramente lho mostrará, e só à noite ou à hora do crepúsculo.


(2) Virgem da aldeia, rainha das donzelas.


(3) Dança indígena.


(4) O «pano» dos indígenas, ou tanga. (N. T. P.).


(5) e (6) Tuiavii quer dizer com isto os botões e os elásticos.


(7) De viagem.


(8) Reuniões, festas nocturnas.


(9) Amo; cavalheiro.


(10) Trata-se provavelmente do fraque.


(11) Adorno da cabeça.


(12) O espírito malígno, o diabo.


 


 


 


 


Das arcas de pedra, das gretas de pedra.


das ilhas de pedra e do que entre elas há


 


 


O Papalagui mora, como o mexilhão do mar, dentro duma concha dura. Vive entre pedras, como a escolopendra entre as fendas da lava. Tem pedras a toda a volta, de lado e por cima. A sua cabana assemelha-se a um baú de pedra posto ao alto; um baú cheio de cubículos e de buracos.


Entra-se e sai-se da concha de pedra por um só e mesmo sítio. O Papalagui chama a esse sítio «entrada» quando entra na cabana, e «saída» quando sai, muito embora uma e outra sejam exactamente o mesmo. Há um grande batente de madeira que temos que empurrar com toda a força antes de poder penetrar na cabana. Mas isso é só um começo: somos obrigados a empurrar mais uns quantos batentes e só depois é que ficamos realmente dentro da cabana.


A maior parte das cabanas é habitada por maior número de pessoas do que as que há numa só aldeia de Samoa. É preciso, por isso, saber-se exactamente o nome da aiga (1) que se quer visitar. Porque cada aiga ocupa a sua própria parte do baú de pedra, no cimo, em baixo ou a meio, à direita, à esquerda ou mesmo em frente. Além disso, na maior parte das vezes, uma aiga nada sabe da outra, mas mesmo nada, como se como se entre elas houvesse, não apenas uma parede de pedra, mas Manono, Apolima, Savaii (2) e inúmeros mares. Muitas vezes mal sabem o nome das que lhes estão ao lado e quando se encontram, ao entrar para o abrigo, cumprimentam-se de má vontade ou zunem, quais insectos hostis, como se estivessem zangadas de se verem constrangidas a viverem perto uma da outra.


Quando uma aiga mora lá em cima, junto ao telhado da cabana, temos que trepar em ziguezague ou à roda, através de vários ramos, antes de chegar ao sítio onde o nome da aiga estiver escrito na parede. Vemos então uma graciosa imitação de um mamilo de mulher, o qual devemos premer até soar um grito que fará vir a aiga. Esta, graças a um boraquinho redondo e gradeado aberto na parede, vê se não trata de um inimigo. Só depois abre. Se reconhece um amigo, desprende logo um grande batente de madeira solidamente fechado a cadeado e puxa-o contra si, o que permite ao visitante entrar por essa fresta na cabana propriamente dita.


Esta é novamente cortada por inúmeras e rijas paredes de pedra e assim continuam a insinuar-nos de batente em batente, a passar de um baú para outro baú cada vez mais pequeno. Cada baú - a que o Papalagui chama sala - possui um buraco através do qual entra a luz. e se for grande, dois ou mais buracos. Esses buracos são tapados com vidro, que se pode afastar para fazer entrar ar fresco nos baús, coisa assaz necessária. Há, no entanto, muitos baús sem buracos para o ar e para a luz.


Um Samoano depressa sofocaria num baú assim, onde não passasse ar fresco, como acontece em todas as cabanas de Samoa. Além disso, os cheiros da cabana-cozinha também têm que sair. O ar que vem de fora não é, em geral, melhor; é quase incompreensível que um homem não morra em tal sítio, que o desejo de sair dali o não transforme em pássaro, que lhe não cresçam asas para poder tomar impulso e levantar voo, rumo ao ar livre e ao sol. Pois, mesmo assim, o Papalagui gosta dos seus baús de pedra e não se apercebe de quanto eles são malsãos.


 


Cada baú tem o seu fim próprio. O baú maior e mais claro destina-se às fonos (3) da família ou ao acolhimento dos visitantes; há outro que serve para dormir. e é aí que se põem as esteiras, isto é, que se as estende sobre um estrado de madeira com pés altos, a fim de que o ar passe por baixo delas. Num terceiro baú, tomam-se as refeições e fazem-se nuvens de fumo; no quarto, guardam-se os alimentos; cozinha-se no quinto, e toma-se banho no último, que é o mais pequeno, e também o mais belo cubículo. Está enfeitado com grandes espelhos, o chão embelezado com uma camada de seixos multicolores e, mesmo ao meio, há uma grande bacia de metal ou pedra na qual corre água fria ou água aquecida ao sol. É nessa grande bacia, maior mesmo do que o belo túmulo de um chefe de tribo, que uma pessoa se mete, para limpar e lavar o seu corpo de toda a poeira dos baús. Cabanas há, é claro, com maior número de baús. Como também há cabanas onde cada criança, e cada servo do Papalagui, possui o seu próprio baú. Há-os até para os cães e para os cavalos.


É pois nestes baús que o Papalagui passa a vida. Encontra-se, consoante a hora, ora num, ora noutro baú. É aí que crescem os seus filhos, entre pedras e muito acima do chão, às vezes mais alto do que o cimo de uma grande palmeira. De vez em quando o Papalagui deixa os seus baús privados, como ele lhes chama, e vai até outro baú destinado aos negócios, onde não quer que o incomodem e onde mulheres e filhos são indesejáveis. Enquanto isso, as raparigas e as mulheres preparam as refeições na cabana-cozinha, dão brilho às peles para os pés ou lavam os panos. Se os Papalaguis são ricos e podem dar-se ao luxo de ter criados, são estes que fazem tais trabalhos enquanto os Papalaguis vão fazer visitas ou procurar novas provisões de alimentos.


Há, na Europa, tantos homens a viverem deste modo quantas palmeiras há em Samoa, ou mesmo muitos mais. Alguns hão-de ter, por certo, um desejo ardente de ver a floresta, o sol e a luz; mas isso é geralmente tido por doença a precisar de remédio. Quando alguém se não mostra contente cpm aquela vida vivida no meio das pedras, dizem: «É um indivíduo desnaturado», o que quer dizer: ignora o que Deus destinou para o homem.


 


Esses baús de pedra encontram-se em grande número e muito próximos uns dos outros; nenhuma árvore, nenhum arbusto os separ; encontram-se ombro a ombro, como homens, e em cada um deles há tantos Papalaguis como numa aldeia de Samoa. Do outro lado, à distância de uma pedrada, encontra-se uma outra fila de baús, igualmente ombro a ombro e habitados por homens. Entre essas duas filas há uma estreita greta a que o Papalagui chama «rua». Essa greta é, às vezes, tão longa como um rio e coberta de pedras duras.Muito se tem que andar, primeiro que se encontre um sítio mais desafogado; mas é aí precisamente que vêm desembocar outras gretas. Têm o mesmo comprimento dos rios de água doce e as suas aberturas laterais são outras tantas gretas de pedra, semelhantes às demais. Pode-se assim diambular dias inteiros entre essas gretas antes de se dar com uma floresta ou um naco de céu azul. Nunca, no meio das gretas, se vê, na realidade, a cor do céu. É que em cada cabana há pelo menos um, e por vezes vários sítios onde se faz fogo, e assim o ar está sempre cheio de fumo e de cinza, como acontece durante a erupção da grande cratera do Savaii. Esse ar insinua-se pelas gretas, de modo que os baús de pedra mais altos parecem-se com os limos dos pântanos de «mangrove», e os homens apanham com terra negra nos olhos e nos cabelos e com areia dura nos dentes. Nas isso não impede que os homens percorram as tais gretas desde manhã até à noite. Alguns sentem mesmo com isso um especial prazer. Em certas gretas reina a confusão: escoam-se os homens por elas como espessa vasa. São as ruas que comportam enormes caixas de vidro onde estão dispostas todas as coisas de que o Papalagui necessita para viver: panos, ornamentos para a cabeça, peles para os pés e para as mãos, provisões de comida, carne, alimentos a sério como sejam os frutos, os legumes, e nuitas coisas mais. Tudo ali está para tentação dos homens. Mas ninguém tem o direito de tirar o que quer que seja, mesmo em caso de extrema necessidade; para isso é preciso ter recebido uma licença especial e feito uma oferenda.


Nessas gretas, o perigo ameaça por todo o lado, pois não só os homens caminham em tropel, como circulam e galopam a cavalo em todas as direcções ou se fazem transportar em grandes baús de vidro que deslizam sobre rampas metálicas. O barulho é enorme. Fica-se surdo dos ouvido, por via dos cascos dos cavalos e dos pés dos homens cobertos de peles duras, que ferem as pedras do chão. Há crianças a gritar, há homens a gritar de alegria ou de terror, grita toda a gente! Só aos gritos é que conseguimos fazer-nos ouvir. A barulheira é geral: são uns estalos, uns batuques, um estrondo tal, que mais parece a falésia de Savaii em dia de grande tempestade. Mas o bramido desta é mais agradável, não nos dá cabo dos sentidos, como o das gretas.


Resumindo: baús de pedra com os seus muitos homens, fundas gretas de pedra correndo para um lado e para outro, quais mil e um rios, com seres humanos lá dentro, barulho e estrondo, poeira negra e fumo por toda a parte, árvore alguma no horizonte e nada de céu azul, nada de ar puro ou de núvens - a isto chama o Papalagui uma «cidade», criação de que muito se orgulha; quando muitos há, que ali vivem, que nunca viram uma floresta, um céu lavado ou o Grande Espírito, face a face. Homens que vivem como os animais que rastejam nos pegos e se escondem sob os corais; e ainda estes estão rodeados pela límpida água do mar, e o sol ainda lhes chega com a sua cálida boca. Orgulhar-se-á o Papalagui desses calhaus que assim juntou? O Papalagui é um indivíduo de um bom senso algo singular. Faz imensas coisas sem sentido que o põem doente, e apesar disso gaba-se e vangloreia-se delas.


A cidade é, pois, isto de que eu acabo de falar. Mas há muitas cidades, cidades pequenas e cidades grandes. As maiores são aquelas onde moram os chefes do lugar com postos mais elevados. As cidades encontram-se dispersas no meio das terras, como as nossas ilhas no meio do mar. A distância que as separa corresponde por vezes à que nós temos que percorrer para ir tomar banho ao mar, mas também, outras vezes, a um dia de caminho. Todas as ilhas de pedra estão ligadas entre si por caminhos já traçados. Mas pode-se igualmente viajar num barco terrestre, comprido e estreito como um verme, que cospe fumo sem parar e desliza com grande rapidez sobre uns fios de ferro, com mais rapidez do que uma canoa de doze lugares em plena corrida.


Mas se apenas quisermos dizer talofa (4) a um amigo de outra ilha, não precisamos de ir a sua casa ou de correr dentro daquilo. Sopramos a mensagem em fios metálicos que se estendem, como lianas, de uma a outra ilha de pedra, e a mensagem chega ao sítio designado mais depressa do que um pássaro em pleno voo.


Entre todas essas ilhas de pedra, estende-se a terra propriamente dita chamada Europa. É uma terra em parte bonita e fértil, como a nossa. Tem árvores, rios e florestas e também aldeias verdadeiras. Embora as suas cabanas sejam igualmente de pedra, nem por isso deixam de estar, na maior parte das vezes, rodeadas de árvores carregadas de fruta; a chuva lava-as por todos os lados, e seca-as o vento.


 


Nessas aldeias moram homens dotados de natureza diferente da dos habitantes das gretas. Chamam-lhes homens do campo. Têm mãos mais rugosas e panos mais sujos que os homens das gretas, muito embora possuam muito mais de comer do que eles.


A sua vida é muito mais bela e saudável do que a dos homens das gretas. Mas não é isso o que eles acham, e por isso invejam os outros a quem chamam mandriões, por eles não trabalharem na terra, nem enterrarem e desenterrarem frutos. São ambos inimigos, pois os homens do campo têm que alimentar os homens das gretas com o produto da sua terra, guardar, criar e engordar o gado e partilhá-lo com eles. De qualquer modo, custa-lhes sempre muito abastecer de alimentos os homens das gretas e nunca percebem realmente porque é que estes usam mais belos panos do que eles, têm mãos mais brancas e não são obrigados, como eles, a suar ao sol e a tiritar à chuva.


Coisa que, de resto, preocupa muito pouco o homem das gretas. Este está presuadido de que tem direitos superiores aos do homem do campo e que aquilo que faz tem tem mais valor do que enterrar ou desenterrar frutos. Este conflito entre as duas partes não provoca contudo qualquer guerra entre elas. Quer viva entre gretas, quer viva no campo, o Papalagui acha que tudo está bem como está. Quando o homem do campo entra nas gretas, admira o poderio do homem que as habita, e este canta e arrulha sempre que atravessa as aldeias do homem do campo. O homem das gretas deixa o homem do campo engordar artificialmente os seus porcos, e este deixa o homem das gretas construir e gozar os seus baús de pedra.


Quanto a nós, filhos livres do sol e da luz, desejamos continuar fiéis ao Grande Espírito e não sobrecarregar com pedras o seu coração. Só indivíduos desvairados e doentes, homens que largaram a mão de Deus, serão capazes de viver felizes entre gretas daquelas, sem sol, sem luz e sem vento. Reconhecemos a incontestável felicidade do Papalagui, frustremos as suas tentativas de construir, ao longo das nossas margens banhadas pelo sol, os seus baús de pedra, e de destruir a nossa alegria com pedras, gretas, sujidade, barulho, fumo e areia, como é desejo seu fazer.


 


 


(1) Família.


(2) Três ilhas do grupo de Samoa.


(3) Reuniões, assembleias.


(4) Saudação de Samoa, à terra: ani-te.


 


 


 


Do metal redondo e do papel forte


 


 


Escutai-me bem, meus avisados irmãos, crêde no que vos digo, e considerai-vos felizes por ignorardes os males e as angústias do homem branco. Como todos vós sois testemunhas, o missionário proclama que Deus é amor e que um bom cristão deve ter sempre a imagem do amor presente no seu espírito. É por essa razão que, segundo ele, o Papalagui dirige a sua prece ao grande Deus. Mas ele mentiu-nos, ele enganou-nos, o missionário; o Papalagui corrompeu-o, de modo que ele nos engana usando as palavras do Grande Espírito. A verdadeira divindade do homem branco é o metal redondo e o papel forte a que ele chama dinheiro. Quando se fala a um Europeu do Deus do amor, ele faz uma careta e sorri. Sorri de tão ingénua maneira de pensar. Quando lhe estendem uma peça de metal redondo e brilhante ou um papel grande e forte, logo os seus olhos brilham e a saliva lhe assoma aos lábios. O dinheiro é o objecto do seu amor, o dinheiro é a sua divindade. Todos os homens brancos pensam nisso, até mesmo a dormir. Muitos há cujas mãos se tornam aduncas e semelhantes às patas da grande formiga dos bosques, à força de manejarem a todo o instante o metal e o papel. Muitos há cujos olhos se tornaram cegos à força de contarem o dinheiro. Muitos há que pelo dinheiro sacrificaram o riso, a honra, a consciência, a felicidade e até mesmo mulher e filhos. Quase todos eles sacrificaram a saúde ao metal redondo e ao papel forte, isto é, ao dinheiro.Trazem-no dentro dos panos, dobrado e metido em duras peles.


À noite, põem-no debaixo do seu rolo de dormir, para que ninguém lho roube. Pensam nisso todos os dias, a toda a hora, a todo o instante. Todos, todos eles o fazem! Até mesmo as crianças devem e são obrigadas a pensar nisso. É o que a mãe lhes ensina e vêem o pai fazer. Todos os Europeus são assim! Ao caminharmos pelas gretas do Siamani (1), ouvimos a todo o passo uma voz gritar: «mark!». E logo o mesmo grito: «mark!». Ouvimo-lo por toda a parte: é esse o nome do metal brilhante e do papel forte. Em Falani (2) franco, em Peletania (3) schilling, em I tália lira. Marco, franco, xelim, lira, é tudo a mesma coisa. Tudo tem o mesmo nome: dinheiro, dinheiro. O dinheiro é de facto o Deus do Papalagui, se a gente considerar Deus aquilo que mais se adora.


É preciso notar que nas terras do homem branco é impossível viver sem dinheiro, uma só vez que seja, do nascer ao pôr-do-sol. Se não tiveres dinheiro nenhum, não poderás matar a fome nem mitigar a sede, não encontrarás esteira para a noite, serás lançado no fale pui pui (4) e falar-se-á de ti em muitos e variados papéis (5); tudo isto só por não teres dinheiro! tens que pagar, isto é, tens que dar dinheiro pelo chão sobre o qual caminhas, pelo sítio onde se encontra a tua cabana, pela esteira onde passas a noite, pela luz que ilumina a tua cabana. Tens que pagar para teres direito a disparar sobre um pombo ou para banhares o teu corpo no rio. Sempre que queiras ir aos lugares onde os homens costumam folgar, onde eles cantam e dançam, ou sempre que queiras pedir um conselho ao teu irmão, terás que dar muito metal redondo e papel forte em troca. Por tudo tens que pagar. Por todo lado há irmãos teus que te estendem a mão e te desprezam ou se enfurecem se nada lá deixares. Nem o teu mais humilde sorriso, nem o teu mais cordial olhar chegam para lhes comover o coração. Abrem as goelas e gritam-te: «Miserável! Vagabundo! Ladrão!». Tudo isto quer dizer a mesma coisa e é a maior afronta que nos podem fazer. Até para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua aiga tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo na terra e pela grande pedra que te põem sobre a tumba, em sinal de recordação.


Descobri uma única coisa pela qual se não pede ainda dinheiro na Europa, coisa que cada um pode fazer as vezes que quiser: respirar o ar. Julgo que terá ficado esquecido, mas não me admirava nada que, se as minhas palavras fossem ouvidas na Europa, não exigissem logo, por via disso, algum metal redondo e algum papel forte. Porque os Europeus estão sempre à cata de novos motivos para pedir dinheiro.


 


Sem dinheiro, tu és, na Europa, um homem sem cabeça e sem membros; não és nada. Tens que ter dinheiro. Precisas de dinheiro como precisas de comer, de beber e de dormir. Quanto mais tiveres, melhor vives. Se tiveres dinheiro, poderás ter tanto tabaco, tantos anéis e tantos panos quanto o dinheiro que tiveres. Se tiveres muito, poderás ter muitas coisas. É por isso que todos desejam ter muito dinheiro. Cada qual mais do que o vinho. Daí a sua avidez, o seu olhar cravado em tudo quanto toca a dinheiro. Atira uma peça de metal redondo para a areia e verás as crianças precipitarem-se, baterem-se para a apanhar; aquele que a apanha é o vencedor, e com isso rejubila. Mas raramente se deita assim dinheiro para a areia.


De onde nos vem o dinheiro? Como é que se faz para ter muito dinheiro? Oh, vem de muitas maneiras, umas fáceis, outras difíceis: quando cortas o cabelo ao teu irmão, quando lhe tiras o lixo da frente da cabana, quando conduzes uma canoa na água, quando tens uma ideia interessante. Devo acrescentar, para ser justo, que se tudo exige muito papel forte e muito metal redondo, também se torna fácil arranjá-lo a troco de qualquer coisa. Basta que faças uma acção a que eles na Europa chamam «trabalho». «Trabalha e terás dinheiro», diz uma lei moral europeia.


Há aqui uma grande injustiça; mas o Papalagui nem quer sonhar, nem sequer quer pensar nisso, pois nesse caso seria forçado a reconhecê-la. Nem todos aqueles que têm muito dinheiro trabalham muito. (Todos eles gostariam, até, de ter muito dinheiro sem trabalhar.) A coisa passa-se assim: quando um Branco tem dinheiro suficiente para a sua comida, para a sua cabana, para a sua esteira e algo mais ainda, manda logo o seu irmão trabalhar para ele, graças ao dinheiro que tem a mais. Destina-lhe, para começar, aquele trabalho que lhe põe as mãos sujas e rugosas. Manda-o limpar os seus próprios excrementos. Se é mulher, arraja uma criada para o seu serviço, a qual tem que limpar-lhe a esteira suja, os pratos da comida e as peles para os pés, e remendar os panos rasgados; e tudo o mais que faça terá que ser útil para a ama. Ele ou ela têm então tempo para se consagrar a um trabalho mais importante e mais divertido, que não suje tanto as mãos, que não canse e que renda mais dinheiro. Se é construtor de pirogas, deve o outro ajudá-lo também a construir pirogas. Fica com a maior parte do dinheiro que este ganha a ajudá-lo e que de facto deveria caber-lhe por inteiro, e, logo que lhe é possível, põe dois, e depois três irmãos seus a trabalharem para si; e assim em número crescente, até chegarem a cem e mais, vão os seus irmãos construindo pirogas para ele. E isto até chegar ao ponto de nada mais fazer do que deitar-se na esteira, beber kava europeu, queimar os seus rolos de fumo, entregar as canoas já prontas e arrecadar o metal e o papel que outros, com o seu trabalho, ganharam para ele. Dizem então os homens: é rico. Invejam-no, adulam-no e falam-lhe com palavras bonitas e escolhidas. Porque, no mundo dos Brancos, a importância de um homem não é determinada nem pela sua bravura, nem pela sua coragem, nem pelo fulgor do seu espírito, mas sim pela quantidade de dinheiro que possui ou que é capaz de ganhar por dia, dinheiro esse que ele fecha no seu grande baú de ferro, o qual nenhum tremor de terra é capaz de destruir.


 


Muitos Brancos há que amontoam o dinheiro que para eles outros ganharam, o depositam num sítio bem guardado e para aí vão acarretando sempre mais, até que um dia já não precisam de mandar os outros trabalhar para eles, trabalhabdo o dinheiro no seu lugar. Nunca consegui perceber como é que isso era possível, sem haver magia negra; e no entanto tudo se passa assim: o dinheiro multiplica-se como as folhas de uma árvore e o homem até quando dorme vai enriquecendo.


Um Papalagui que possua, por si só, muito dinheiro, bem mais do que os seus irmãos e o bastante para facilitar o trabalho de cem, ou até mil homens, nada reparte com eles; antes rodeia com as mãos o metal redondo e senta-se em cima do papel forte, com um olhar cheio de avideze de volúpia. E quando lhe perguntam: «O que é que tens intenção de fazer com todo esse dinheiro? Nada mais podes fazer, nesta terra, do que vestir-te, matar a fome e mitigar a sede!!», não sabe o que responder, ou então diz: «Tenho intenção de ganhar mais dinheiro, ganhar sempre mais e mais ainda!». E a gente logo vê que o dinheiro o pôs doente e lhe ocupa agora todos os pensamentos.


Fica doente e obcecado, porque a sua alma se afinca ao metal redondo e ao papel forte, que, a seu ver, nunca lhe chega, pelo que não pode deixar de arrebanhar o mais possível. É incapaz de dizer para consigo: quero ir-me embora deste mundo como para cá vim, sem dar motivo a queixas e sem fazer mal; pois assim, na verdade, me enviou o Grande Espírito a esta terra: sem metal redondo e sem papel forte. Há quem assim pense mas são raros. A maior parte deles ficam doentes, não recobram mais a saúde do coração e regozijam-se com o poder que a abundância do dinheiro lhes confere. Ficam inchados de orgulho, como frutos podres sob a chuva tropical. Fazem, com volúpia, trabalhar duramente muitos dos seus irmãos, enquanto o seu corpo engorda e se fortalece. Procedem assim sem que a consciência os apoquente. Regozijam-se dos seus belos dedos brancos que já não têm que sujar-se. Roubam a todo o passo a força de outros homens e fazem-na sua, sem que isso os atormente ou lhes tire o sono. Não sonham sequer em dar aos outros uma parte do seu dinheiro, para lhes facilitar a vida.


Há pois, na Europa, uma metade que trabalha muito e se suja, e outra metade que trabalha muito pouco ou nada. A primeira não tem tempo de sentar-se ao sol, ao passo que a outro o tem de sobra. Diz o Papalagui que os homens não podem ter todos o mesmo dinheiro, nem sentar-se todos juntos ao sol. É graças a esta doutrina fomentada pelo dinheiro que ele se permite ser cruel. Tem o coração duro e o sangue frio; mostra-se até velhaco, falso, raramente honesto e sempre perigoso quando corre atrás do dinheiro. Quantas vezes não acontece um Papalagui bater noutro por dineiro, ou, para dele o desapossar, matá-lo, adormecê-lo com o veneno das suas palavras! É por isso que é raro um Papalagui ter confiança noutro, pois todos conhecem a sua comum fraqueza. Nunca a gente sabe, assim, se um homem que tem muito dinheiro terá bom coração; muito possivelmente será má pessoa. Nunca a gente sabe como ou donde vem a riqueza a alguém.


Em contrapartida, também o homem rico não sabe se as honras que lhe prestam são devidas à sua pessoa ou ao seu dinheiro; a maior parte das vezes é ao dinheiro. e é por isso que eu não percebo porque é que aqueles que não têm muito metal redondo e muito papel forte tanto se envergonham disso e tanto invejam o homem rico, em lugar de se considerarem, isso sim, dignos de inveja. De facto, assim como é de mau gosto um homem atravancar o peito com muitos colares de conchas, igualmente o será com o pesado fardo do dinheiro. Dificulta-lhe a respiração e tira-lhe a liberdade de movimentos de que os seus membros necessitam.


 


Mas nenhum Papalagui quer renunciar ao dinheiro. Nem um só o faz. Quem não gosta dele é alvo de zombarias, é valea (6). «A riqueza - isto é, ter muito dinheiro - torna uma pessoa feliz», diz o Papalagui, e também: «O país que tiver mais dinheiro será o mais feliz!».


Todos nos, meus sábios irmãos, somos pobres. A nossa terra é a mais pobre à luz do sol. Não temos metal redondo e papel forte que cheguem para encher um baú. Segundo o modo de pensar do Papalagui, somos uns pobres mendigos. E no entanto! quando vejo os vossos olhos e os comparo com os dos ricos aliis, os deles parecem-me embaciados, mortiços e cansados, ao passo que os vossos irradiam, como a grande luz, alegria, força, vida e saúde. Só vi olhos iguais aos vossos nos filhos do Papalagui antes deles aprenderem a falar, poia até aí nada sdabem de dinheiro. Oh! como o Grande Espírito nos favoreceu, protegendo-nos desse aitu! O dinheiro é um aitu, pois tudo quanto lhe diz respeito é mau e espalha o mal. Quem só mexe em dinheiro fica sujeito ao seu surtilégio e quem gosta dele tem que o servir e consagrar-lhe, por toda a vida, a sua força e alegria. Prezemos os nossos hábitos, que dizem ser digno de desprezo quem algo exige pela hospitalidade que oferece ou quem reclama uma alofa (7) por cada fruto que dá! Prezemos os nossos hábitos, que não permitem que um possua imenso e o outro nada, ou que um possua muito mais que o outro! E assim não nos tornaremos, em nosso coração, iguais ao Papalagui, que é capaz de se sentir feliz e contente mesmo quando, ao lado, o seu irmão está triste e infeliz.


Tomemos, sobretudo, muito cuidado com o dinheiro! Também a nós o Papalagui nos estende o metal redondo e o papel forte para nos despertar o desejo de o possuir. Pretende ele que o dinheiro torna uma pessoa rica e feliz! Já muitos de nós se deixaram seduzir e contraíram essa grave doença. Mas se vós acreditardes nas palavras deste vosso humilde irmão, se estiverdes conscientes de que digo a verdade quando afirmo que o dinheiro não faz ninguém alegre e feliz, antes traz grave perturbação ao ser humano; e que não é possível ajudar ninguém com dinheiro a torná-lo realmente mais feliz, mais forte e alegre - então havereis de odiar o metal redondo e o papel forte como ao vosso maior inimigo.


 


(1) A Alemanha.


(2) A França.


(3) A Inglaterra.


(4) Prisão.


(5) Jornais.


(6) Parvo.


(7) Presente; recompensa.


 


 


As muitas coisas tornam o Papalagui


mais pobre


 


Podereis reconhecer também o Papalagui pelo seu desejo de nos fazer crer que somos pobres e miseráveis e que necessitamos de muita ajuda e piedade, em virtude de não pessuirmos «coisas».


 


QWueridos irmãos destas muitas ilhas: permiti que vos diga o que é uma «coisa». A noz de coco é uma coisa, o enxota-moscas, o pano, a concha, o anel, o prtato da comida, o adorno da cabeça são outras tantas coisas. Mas há duas espécies de coisas. Há coisas que o Grande Espírito cria sem nós vermos e que nos não exigem, a nós, humanos, qualquer esforço ou trabalho, tais como o anel, o prato ou o enxota-moscas. Pretende então o alii que são estas coisas criadas pelas suas próprias mãos, as coisas humanas, que nos fazem falta; pois não é possível que se esteja a referir às coisas criadas pelo Grande Espírito. Quem, realmente, será mais rico e possuirá mais coisas do Grande Espírito do que nós? Passeai os olhos à vossa volta, até ao longínquo horizonte, onde a grande abóboda azul se apoia na borda da terra: está tudo cheio de grandes coisas - a floresta virgem com os seus pombos selvagens, os seus colibris e piriquitos, a lagoa com os seus pepinos do mar as suas conchas, as suas lagostas e outros animais aquáticos, a praia com o seu rosto claro, a pele macia da areia, o grande mar capaz de imitar o guerreiro furioso, capaz também de sorrir como uma taopoú, a grande abóboda azul diferente de hora para hora, semeada de grandes flores que nos dão uma luz ora doiradaora argêntea. Para quê ser parvo, para quê criar ainda mais coisas para além das coisas sublimes que o Grande Espírito nos dá? Nunca, mas nunca, poderemos nós igualá-lo, porquanto o nosso espírito é demasiado pequeno e demasiado fraco para se medir com o poder do Grande Espírito, e a nossa mão demasiado fraca para se medir com a sua mão magnífica e possante. Tudo quanto fizermos será medíocre, nem sequer vale a pena falar nisso. Com a ajuda de um pau podemos alongar o nosso braço, com a ajuda de uma tamoa (1) aumentar o côncavo da nossa mão, mas nunca Samoanês ou Papalagui algum fez uma palmeira ou um tronco de kava.


O Papalagui julga-se na verdade capaz de obrar tais coisas, julga-se tão forte como o Grande Espírito. Eis porque, do nascer ao pôr-do-sol, milhares e milhares de mãos mais não fazem do que fabricar coisas, coisas humanas cujo sentido ignoramos e cuja beleza desconhecemos. O Papalagui procura inventar sempre novas coisas. As suas mãos tornam-se febris, o seu rosto, cor-de-cinza, curvadas as suas costas; mas os olhos brilham-lhe de felicidade sempre que consegue uma nova coisa. Logo todos a querem ter, todos a adoram e a celebram com cantos na sua língua.


Oxalá, irmãos meus, me acrediteis quando vos digo: eu descobri o que se oculta por detrás dos pensamentos do Papalagui, eu vi o que ele pretende, tão claramente como ao sol do meio-dia. Destruindo, por onde quer que passe, as coisas do Grande Espírito, pretende ele, pelas suas próprias forças, fazer reviver o que mata e persuadir-se a si mesmo que é o Grande Espírito criador das várias coisas.


 


Imaginemos, irmãos, que de repente surge a grande tempestade e arranca a floresta virgem e as montanhas, com todas as suas folhas e árvores, e leva à sua frente todas as conchas e os animais da lagoa; imaginamos que não mais haverá flores de ibisco para as nossas donzelas enfeitarem os cabelos, que tudo, tudo quanto está à vista desaparece, que só nos resta a areia, e que o solo se assemelha à palma da mão estendida ou a uma colina pela qual escorreu a lava incandescente: lamentaríamos então ter perdido tudo - as palmeiras, as conchas, a floresta virgem. Pois precisamente onde se erguem as inúmeras cabanas dos Papalaguis - esses sítios a que eles chamam «cidades» - o solo está tão árido como a palma da mão! É por isso que o Papalagui perdeu o trabalho e brinca ao Grande Espírito para esquecer o que não tem. Como é assim pobre, e a sua terra triste, apodera-se das coisas, colecciona-as como um louco que apanhasse folhas murchas e com elas enchesse a casa. Mas é também por isso que ele nos inveja e deseja que nos tornemos pobres à semelhança dele.


É sinal de pobreza o homem precisar de uma coisa; mostra, com isso, que é pobre em coisas do Grande Espírito. O Papalagui é pobre porque está obcecado pelas coisas. Já não pode passar sem elas. Quando ele, das costas da tartaruga, faz um instrumento para alisar os cabelos (depois de lhes aplicar um óleo), logo de seguida faz ainda uma pele para esse instrumento, um pequeno baú para pôr a pele e mais um baú grande para pôr o baú pequeno. Há baús para os panos, para os tecidos de cima e os tecidos de baixo, para os tecidos de limpar o corpo, tecidos para cobrir a boca e outros tecidos mais, baús para pôr as peles para as mãos e as peles para os pés, baús para o metal redondo e para o papel forte, baús para as provisões e para o livro santo, numa palavra: para tudo quanto há. De todas as coisas faz ele inúmeras coisas, quando uma só bastava. Quando entremos numa cabana-cozinha europeia, vemos uma porção de pratos de comida e de utensílios de cozinha que nunca são usados. Para cada alimento há uma tamoa diferente, uma para a água, outra para o kava europeu, mais outra para a noz de cocoe outra ainda para o pombo.


Numa cabana europeia há sempre tantas coisas que, mesmo que todos os homens de uma aldeia de Samoa carregassem mãos e braços com elas, nem assim conseguiriam levar tudo. Há, numa única cabana. tão grande número de coisas, que a maior parte dos chefes de tribo Brancos necessita de imensos homens e mulheres que outra coisa não fazem do que pôr essas tais coisas no seu lugar e limpar a poeira que as cobre. E até a taopoú mais importante gasta grande parte do seu tempo a contar as suas inúmeras coisas, a mudá-las de um lada para o outro e a limpá-las.


Sabeis, irmão, que eu não minto, e que vos digo toda a verdade tal como a vi, sem tirar nem pôr. Crêde que há na Europa homens que encostam a arma de fogo à sua própria fronte, pois preferem deixar de viver do que viver sem coisas. Porque o Papalagui embriaga o seu próprio espírito de toda a maneira e feitio e, assim, convence-se a si próprio que não pode viver sem coisas, do mesmo modo que um homem não pode viver sem comer.


É por isso que eu nunca encontrei na Europa uma cabana onde pudesse instalar-me, onde nada me impedisse de estender os membros em cima duma esteira. todas as coisas lançavam chispas e tinham cores tão berrantes que eu não conseguia pregar olho. Nunca encontrei verdadeira tranquilidade e nunca senti, como então, tantas saudades da minha cabana de Samoa, onde só o que há é uma esteira e um rolo de dormir, onde só o que chega até mim é a suave brisa do mar.


 


Quem tem poucas coisas considera-se pobre e isso fá-lo sentir-se triste. Não há Papalagui algum que seja capaz de cantar e mostrar um olhar feliz se apenas possuir, como nós, uma esteira para dormir e uma tanoa para comer. Muito se lamentariam os homens e as mulheres do mundo branco se vivessem nas nossas cabanas! Tratavam logo de ir buscar madeira à floresta; traziam depois carapaças de tartaruga, e vidro, e arame, e pedras de todas as cores, bem como outras coisas mais; as suas mãos não paravam, de manhã à noite, até a cabana de Samoa ficar repleta de pequenas e grandes coisas, coisas que se decompõem, todas elas, rapidamente, que um fogo ou uma chuvada tropical bastam para destruir, de modo que é sempre preciso tornar a fazer outras.


Quanto mais realmente europeu for um homem, mais necessidade terá de coisas. Eis a razão porque as mãos do Papalagui nunca param de fazer coisas. A razão porque o rosto dos Brancos se apresenta geralmente cansado e triste, por que só muito poucos gastam tempo com as coisas do Grande Espírito, e a jogar no largo da aldeia, e a compor e cantar canções joviais, ou a dançar ao domingo, em plena luz do dia, ou a fruir dos seus membros de todas as formas possíveis, como a nós nos é dado fazer (2), é que eles têm sempre coisas a fazer. E coisas a guardar. Coisas que se fincam, que se agarram a eles como as formiguinhas das praias. Para se apropriarem das coisas, cometem toda a espécie de crimes, sem que isso lhes afecte o ânimo. Guerreiam-se, não porque a sua honra esteja em jogo, ou para medir forças, mas apenas por cobiça das coisas de outrem.


Apesar disso, todos eles têm consciência de quão pobre é a sua vida; senão, não haveria tantos Papalaguis venerados por terem levado a vida inteira a molhar cabelos em líquidos de várias cores e a pintarem assim belas imagens sobre esteiras brancas. Esses copiam todas as belas coisas criadas por Deus, com todos os cambiantes de cor e toda a sincera alegria de que são capazes. Criam igualmente, com as mãos, homens de terra mole, desprovidos de panos, raparigas de belos movimentos livres como os da taopoú de Matautu (3) ou figuras de homens brandindo clavas, retesando o arco ou espiando pombos na floresta. O Papalagui constrói também grandes cabanas de festa especialmente para esses seres humanos de barro, que as gentes vêm de longe visitar, a fim de fruírem da sua divina beleza.


Envoltos nos seus muitos e grossos panos, os visitantes postam-se diante dos homens de barro e estremecem de emoção. Vi Papalaguis chorarem de alegria à vista de uma tal beleza, que eles mesmos perderam.


E eis que, hoje, os homens brancos querem trazer-nos os seus tesouros, as suas coisas, para também nós nos tornarmos ricos! Contudo essas coisas não passam de setas que envenenam mortalmente o peito daquele que é atingido. Ouvi um Branco que conhece bem a nossa terra dizer: «Temos que levá-los a ter necessidades!». Necessidades, quer dizer coisas! e acrescentou depois esse homem inteligente: «Só então é que eles ganharão de facto gosto pelo trabalho!». E propôs-nos que empregássemos também a força das nossas mãos a fazer coisas, coisas para nós, é claro, mas, acima de tudo, coisas para ele, Papalagui! Como se também nós devêssemos ficar derreados, envelhecidos e curvados!


Irmãos destas muitas ilhas: temos que cuidar cuidado e permanecer vigilantes, pois as palavras do Papalagui parecem bananas doces, mas estão cheias de dardos ocultos, feitos para matar toda a luz e a alegria que há em nós. Não esquecemos nunca que, à parte as coisas do Grande Espírito não servem para nada; só as coisas do homem são úteis, muito úteis, as mais úteis!». Por mais numerosas, por mais refulgentes, brilhantes, sedutoras e aliciantes que sejam, nunca as coisas do Papalagui tornaram mais belo o seu corpo. mais brilhantes os seus olhos, mais apurados os seus sentidos. As coisas dele não servem, pois, para nada; e por conseguinte, o que ele diz e tenta impor-nos vem direito do espírito mau, os seus pensamentos estão imbuídos de veneno.


 


 


(1) Recipiente de madeira com vários pés, no qual se prepara a bebida nacional.


(2) As comunidades das aldeias de Samoa reúnem-se amiúde para jogar ou dançar em conjunto. A prática da dança começa na adolescência. Cada aldeia tem os seus cantos e o seu poeta. À noite, em todas as cabanas se ouvem canções. São muito agradáveis ao ouvido, não só pela língua, rica em vogais, dos insulares, mas também pelo seu sentido musical, de rara pureza.


(3) Aldeia de Upolu.


 


 


O Papalagui nunca tem tempo


 


O Papalagui adora o metal redondo e o papel forte, gosta de encher a barriga com uma série de líquidos provenientes de frutos mortos, e com carne de porco, boi e outros horríveis animais, mas acima de tudo gosta de uma coisa que se não pode agarrar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o muito a sério e conta toda a espécie de tolices acerca dele. Embora não possa haver mais tempodo que o que medeia do nascer ao pôr-do-sol, isso para o Papalagui nunca é o bastante.


O Papalagui nunca está contente com o tempo que lhe coube e censura ao Grande Espírito o não lhe ter dado mais. Chega mesmo a blasfemar contra Deus e a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo cada novo dia que nasce, segundo um plano bastante preciso. Corta-o como se cortaria em pedaços uma noz de coco mole com um cutelo. As várias partes têm todas elas um nome: segundo, minuto, hora. O segundo é mais pequeno que o minuto e este mais pequeno do que a hora. As horas são feitas de todos os segundos e minutos juntos, e é preciso ter sessenta minutos e muitos mais segundos para fazer uma hora.


É uma coisa muito confusa que eu na realidade nunca percebi, pois me indispõe reflectir mais do que o devido sobre coisas tão pueris. O Papalagui, contudo, faz disso toda uma ciência. Os homens, as mulheres e até mesmo as crianças que ainda mal se têm nas pernas trazem consigo, quer presa por grossas cadeias de metal que lhe pendem do pescoço, quer atada ao punho com a ajuda de uma correia de coiro, uma pequena máquina achatada e redonda onde podem ler o tempo, o que não é mesmo nada fácil. Ensinam isso às crianças encostando-lhes a máquina ao ouvido, para lhes despertar a curiosidade.


Pode-se facilmente pegar em tal máquina só com dois dedos; lá dentro tem umas máquinas parecidas com as que há no bojo dos grandes barcos que todos vós conheceis. Mas nas cabanas há outras máquinas do tempo, grandes e pesadas, e outras ainda suspensas no cimo das mais altas cabanas, para que se veja bem de longe. Quando decorreu um certo tempo, isso é-nos indicado por dois dedinhos postados na parte de fora da máquina; ao mesmo tempo que ela solta um grito e um espírito bate num ferro que há lá dentro, fazendo-o ressoar. Sim, há um barulho enorme, um formidável estrondo, nas cidades europeias, ao fim de certo e determinado tempo.


 


Ao ouvir o barulho da máquina do tempo, queixa-se o Papalagui assim: «Que pesado fardo! mais uma hora que se passou!» E, ao dizê-lo, mostra geralmente um ar triste, como alguém condenado a uma grande tragédia. No entanto, logo a seguir principia uma nova hora!


Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doença grave. «O tempo escapa-se-me por entre os dedos!», «O tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dá-me um pouco mais de tempo» - tais são os queixumes do homem branco.


Dizia eu que se deve tratar de uma espécie de doença.... Suponhamos, com efeito, que um Branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu coração arde em desejo por isso: que, por exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele então? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: «não tenho tempo de ser feliz». Mesmo dispondo de todo o tempo que queira, nem com a melhor boa vontade o reconhece. Acusa mil e uma coisas de lhe tomarem o tempo e, de mau grado e resmungando, debruça-se sobre o trabalho que não tem vontade nenhuma de fazer, que não lhe dá qualquer prazer e que ninguém, a não ser ele próprio, o obriga a fazer. Quando de repente se dá conta de que tem tempo, que tem realmente todo o tempo à sua frente, ou quando alguém lhe dá tempo - os Papalaguis dão frequentemente tempo uns aos outros, é mesmo a acção que mais apreciam -, nessa altura, ou já não tem vontade, ou já se cansou desse trabalho sem alegria. E geralmente deixa para o dia seguinte o que podia fazer no próprio dia.


Pretendem alguns Papalaguis que nunca têm tempo. Correm desvairados de um lado para o outro como se estivessem possuídos pelo aitu (1) e causam terror e desgraça onde quer que cheguem, só porque perderam o seu tempo. Esse estado de frenesi e demência é uma coisa terrível, uma doença que nenhum homem de medicina pode curar, doença que atinge muitos homens e que os leva à desgraça.


Como vivem obcecados pelo medo de perderem o seu tempo, todos os Papalaguis - sejam homens, mulheres ou crianças de tenra idade -, sabem com exactidão quantas vezes n asceu o sol e a lua desde que viram pela primeira vez a luz do dia. Este acontecimento é considerado tão importante que o celebram, a intervalos de tempo fixos e regulares, com flores e grandes festas. Reparei, muitas vezes, que eles, no meu lugar, se sentiam envergonhados quando, ao perguntarem-me a idade que tinha, eu não era capaz de responder a tal pergunta, que só me dava vontade de rir! «Mas não podes deixar de saber a tua idade!» Eu calava-me, pensando para comigo: mais vale não saber.


Ter uma idade, quer dizer: ter vivido um determinado número de luas. Isso de se perguntar qual o número de luas apresenta grandes perigos, pois foi assim que se acabou por determinar quantas luas dura em geral a vida dos homens. Ora acontece que cada um, sempre muito atento a isso, passadas que foram já inúmeras luas, dirá: «Pronto! não tarda muito que eu não morra!» Nada mais então lhe causa alegria e, de facto, acaba por morrer daí a pouco tempo.


Raros são os que, na Europa, dispõem realmente de tempo. Ou talvez nem sequer existam. É por isso que eles passam a vida a correr à velocidade de uma pedra lançada ao ar. A maior parte olha para o chão, quando caminha, e balança muito os braços para ir mais depressaQuando os detêm, gritam indignados: «Que ideia a tua, de me vires perturbar! Não tenho tempo! e tu trata de empregar bem o teu!» Tudo se passa como se o que anda depressa tivesse mais valor e bravura do que o que vai devagar.


 


Vi um homem cuja cabeça parecia prestes a estoirar, e cujo rosto passava sucessivamente do vermelho ao verde, um homem que rolava os olhos em todos os sentidos, que abria a boca como um peixe que vai morrer e batia com os pés e com as mãos, tudo porque o seu criado chegara um pouco mais tarde do que tinha prometido. Esse atraso mínimorepresentava para o amo uma perda enorme e irreparável. O criado teve que se ir embora da cabana, pois o Papalagui expulsou-o, dizendo: «Já me roubbaste muito tempo! Quando um indivíduo não tem a mínima consideração pelo tempo, só estamos a perder o nosso com ele!»


Encontrei, uma única vez, um homem que não se queixava de estar a perder tempo e que o tinha de sobra: mas esse era pobre, sujo e desprezado. As pessoas desviavam-se, para o evitar, e ninguém o respeitava. Não entendi tal comportamento, pois ele andava devagar e tinha um olhar sorridente, calmo e bondoso. Quando lhe perguntei qual a razão disso, o seu rosto crispou-se e respondeu-me com voz triste: «Nunca soube empregar o meu tempo de maneira útil; é por isso que não passo de um pobre-diabo desprezado por toda a gente!» Aquele homem tinha tempo, mas nem mesmo ele era feliz.


O Papalagui emprega todas as suas forças, bem como a sua capacidade de raciocínio, em tentar ganhar tempo. Utiliza a água, o fogo, a tempestade e os relâmpagos para parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés e dá asas às palavras, só para ganhar tempo. E porquê tanta canseira? Como é que o Papalagui emprega o seu tempo? Nunca percebi muito bem, embora, pelos seus gestos e palavras, sempre me tivesse dado a impressão de alguém que o Grande Espírito tivesse convidado para um fono.


A meu ver, é precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe concede o repouso necessário, não o deixa apanhar um pouco de sol. Tem que ter sempre o tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo é calma, é paz e sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. É por isso que o maltrata, com os seus modos rudes.


Oh! meus queridos irmãos! Nós nunca nos queixámos do tempo, amámo-lo e acolhemo-lo tal como ele era, nunca corremos atrás dele, nunca tentámos amalgamá-lo ou cortá-lo em pedaços. Nunca ele nos deixou desesperados ou acabrunhados. Se algum de nós há aí a quem falte tempo, que diga! Todos nós o possuímos em quantidade, não temos razões de queixa. Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo, e que muito embora ignoremos quantas luas se passaram, o Grande Espírito nos chamará quando lhe aprouver. Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter a noção do verdadeiro tempo que tem perdido. Devemos destruir as suas pequenas máquinas do tempo e levá-lo a confessar que há muito mais tempo do nascer ao pôr-do-soldo que ao homem lhe é dado gastar.


 


(1) Diabo.


 


 


O Papalagui tornou Deus mais pobre


 


 


O Papalagui tem uma maneira de pensar particularmente confusa. Está sempre a ver como é que isto ou aquilo lhe poderá ser útil ou dar-lhe certos direitos. Não se preocupa em pensar nos homens em geral, mas apenas num, o qual acaba sempre por ser ele próprio.


Quando um homem diz: «A minha cabeça é minha e de mais ninguém!» tem razão, tem muita razão, e contra isso ninguém terá nada a objectar. Aquele a quem uma mão pertence, será quem mais direitos tem sobre ela. Até aqui estou de acordo com o Papalagui. Mas ele também diz:«A palmeira é minha!», só porque ela cresce, por acaso, diante da sua cabana. Como se tivesse sido ele a fazê-la crescer! Numca a palmeira poderá pertencer-lhe, nunca! A palmeira é a mão que Deus nos estende, através da terra; Deus tem muitas mãos. Cada árvore, cada erva, o mar, o céu e as nuvens são outras tantas mãos de Deus. Podemos tocar-lhes e regozijar-nos com isso, mas lá por isso não temos o direito de dizer: «A mão de Deus é a minha mão!»No entanto é isso o que o Papalagui faz.


Laúquer dizer, na nossa língua, «meu», e também «teu», o que, por assim dizer, vai dar ao mesmo. Pelo contrário, na língua do Papalagui não há palavras mais diferentes do que «meu» e «teu». «Meu» designa algo que é minha pertença, e só minha. «Teu» designa algo que só a ti pertence. Dis pois o Papalagui, a respeito de tudo quanto se encontre nas imediações da sua cabana: isto é meu. Ninguém, a não ser ele, tem direito àquilo. Por toda a parte onde vás, e tudo quanto vejas junto do Papalagui, seja fruto, árvore, ribeiro, floresta ou um monte de terra, sempre ele te dirá: «Isto é meu! Toma cautela, não toques no que te não pertence!» E se tu, mesmo assim, tocares, desata a gritar, a chamar-te ladrão, o que é um termo particularmente humilhante, e tudo isso só porque te atreveste a tocar num «meu» do teu próximo. Então, os seus amigos, e bem assim os servos dos chefes de tribo de mais alta estripe acorrem, acorrentam-te, levam-te para o fale pui pui, e eis-te proscrito para o resto dos teus dias.


Há leis especiais que fixam com precisão a quem pertencem os vários «meus», para que ninguém desate a tocar nas coisas que outra pessoa declarou pertencerem-lhe. Há na Europa seres humanos que têm por única ocupação velar por que ninguém transgrida essas leis, ou seja, ninguém tire ao Papalagui aquilo de que ele mesmo se apropriou. Com isto, quer o Papalagui convencer-se a si próprio que obteve um verdadeiro direito, como se Deus lhe tivesse definitivamente cedido a sua propriedade, como se fosse a ele, e não a Deus, que as palmeiras, as árvores, as flores, o mar, o céu e as nuvens pertencem.


O Papalagui é obrigado a ter estas leis e estes guardas para os seus inúmeros «meus», a fim de que aqueles que têm poucos ou nenhuns «meus» se não apoderem deles. De facto, quando uns se apropriam de muitos, os outros ficam sem nenhuns. Porque nem toda a gente conhece as manhas e os sinais secretos precisos para se apropriar de muitos «meus». Para o fazer, há que ser dotado de um certo carácter, o qual nem sempre corresponde à ideia de honra que nós temos. Aqueles que possuem poucos «meus», porque não querem magoar Deus nem roubar-lhe coisa alguma, são provavelmente os melhores de todos os Papalaguis, mas não os há muitos, de certeza.


 


A maior parte deles rouba Deus sem a mínima vergonha. São incapazes de agir de outro modo. Muitas vezes, ignoram que se comportam mal, precisamente porque todos procedem assim sem reflectirem no que fazem, e sem se envergonharem. Há também aqueles a quem o pai oferece todos os seus «meus» na hora em que nascem. Deus, em todo o caso, já quase nada tem. Com isso do «meu» e do «teu», os homens já quase tudo lhe tiraram. Os raios de sol que Deus manda a todos, já não são repartidos de igual maneira, pois alguns gozam mais deles do que outros. Na maior parte das vezes, só um pequeno número de Papalaguis beneficia das belas e grandes praças soalheiras, mas muitos são os que, na sombra, recebem apenas uns pálidos raios de sol. Deus já não pode sentir verdadeira alegria, pois já não é o alii sili (1) todo-poderoso, no meio do Seu grande reino. O Papalagui renega-o quando diz: «É tudo meu!» Embora pense muito, não pensa o bastante para disso se dar conta. Pelo contrário, afirma que a sua maneira de proceder é honesta e conforme com as leis. Mas aos olhos de Deus não o é.


O Papalagui, se reflectisse bem, saberia que aquilo que não estamos aptos a guardar nos não pertence, e que, no fundo, nada há que possamos conservar. Perceberia emtão que se Deus nos deu o seu vasto reino, foi para que todos nele tivéssemos lugar e aí vivêssemos felizes. E esse reino era suficientemente grande para poder proporcionar a todos um pequeno lugar ao sol e uma pequena alegria. Todos teriam, na verdade, um lugar debaixo de uma palmeira, um pequeno espaço onde poisar os pés. Foi isso que Deus previu e quis. Como poderia ele ter esquecido um só que fosse de entre os seus filhos? E, no entanto, quantos homens não andam em busca do pequeno lugar que Deus lhes reservou!


Como o Papalagui não respeita os mandamentos de Deus e se arroga o direito de criar as suas próprias leis, Deus envia-lhe nuitos inimigos da sua propriedade. Envia-lhe a velhice, a degradação, a podridão, envia-lhe a humidade e o calor que destroem os «meus». Entrega os seus tesouros à sanha do fogo e da tempestade. Mas, sobretudo, instila o medo na alma do Papalagui, a ansiedade quanto àquilo tudo de que se apropriou. Para que lhe não levem de noite o que de dia juntou, vê-se o Papalagui forçado a permanecer acordado; o seu sono nunca é por isso, verdadeiramente profundo. Vê-se forçado a ter as mãos e o espírito constantemente presos à ponta dos seus «meus». Oh! como todos esses «meus» o atormentam a cada passo, como eles exclamam entre gargalhadas: «Roubaste-nos a Deus, mas nós agora torturamos-te e fazemos-te sofrer a valer!»


Mas Deus infligiu ao Papalagui um castigo ainda pior do que o medo: a luta entre os que têm pouco ou nenhum «meu» e os que de muitos se apropriam. É uma luta encarniçada e sem mercê, a que se trava noite e dia. Todos eles sofrem com essa luta, que lhes tira a alegria de viver. Os que são ricos deveriam partilhar aquilo que têm, mas esses nada querem dar. Os que nada têm querem que lhes dêem alguma coisa, e nunca obtêm nada. Estes, também não é pela glória de Deus que combatem: ou tardaram simplesmente em roubar, ou nisso se mostraram desajeitados, ou, por último, nunca se lhes proporcionou a ocasião. Muito poucos se dão conta de que estão de facto a pilhar o reino de Deus. Só muito raramente se ouve o apelo de algum homem justo exortando toda a gente a restituir o «meu» a Deus.


 


Que pensaríeis vós, irmãos, de um homem que, possuindo uma cabana suficientemente grande para lá caber toda a aldeia de Samoa, recusasse o seu tecto, por uma noite que fosse, ao viandante que passa? Que pensaríeis de um homem que, tendo nas mãos um cacho de bananas, nem uma só oferecesse ao esfomeado que lha pede? Leio no vosso olhar a indignação e vejo nos vossos lábios um grande desprezo. Pois é exactamente assim que o Papalagui se comporta em todas as circunstâncias da vida. Ainda que tenha cem esteiras, nem uma só dará a quem nenhuma tem. Antes o censura por não a possuir. Pode ter uma cabana cheia, de alto a baixo, de provisões mais que suficientes para ele e para toda a aiga, que nunca lhe passará pela cabeça ir à procura dos que nada têm que comer, dos pálidos e esfomeados. E, no entanto, muitos são os Papalaguis pálidos e esfomeados.


A palmeira deixa cair as folhas e os frutos quando estes amadurecem. O Papalagui vive como uma palmeira que retivesse folhas e frutos, dizendo: «São meus! Não tendes o direito de os apanhar ou de os comer!» Como faria ela então, quando viessem os novos frutos? A palmeira é bem mais sensata do que o Papalagui.


É verdade que entre nós também alguns há que têm mais do que os outros. Honramos, assim, o chefe de tribo que possui mais esteiras e mais porcos. Mas o respeito que lhe testemunhamos é devido à sua pessoa e não às suas esteiras e aos seus porcos, que nós mesmos, aliás, lhe oferecemos como alofa, a fim de lhe exprimirmos a nossa alegria e louvarmos o seu ânimo valoroso e o seu espírito lúcido. O Papalagui, esse, tem respeito pelo grande número de esteiras e de porcos que o seu irmão possui, e não pelo seu valor e inteligência, que não lhe interessam para nada. Não tem por assim dizer nenhum respeito por um irmão que não possua esteiras nem porcos.


Como as esteiras e os porcos não vão ter por si mesmos a casa dos pobres e esfomeados, também não vê o Papalagui qualquer razão para ser ele a levar-lhos. É que ele não tem respeito pelos seus irmãos, mas tão somente pelas suas esteiras e pelos seus porcos. Se ele amasse e respeitasse os seus irmãos, e não lutasse contra eles por causa dos «meus» e «teus», logo lhes levaria as esteiras de que necessitam para que compartilhassem também do seu grande «meu». Partilharia a sua esteira com eles, em vez de os deixar expostos às trevas da noite.


Nas o Papalagui ignora que Deus nos deu as palmeiras, as bananas, o delicioso taro, as aves da floresta e os peixes do mar para nós todos gozarmos deles e sermos felizes; todos, e não apenas alguns, enquanto os demais se vêem forçados a viver na indigência e na miséria. Se Deus põe assim tantos bens nas mãos do homem, é para que este os partilhe com o seu irmão, quando não, o fruto apodrece-lhe nas mãos. Porque Deus estende as suas inúmeras mãos a todos os homens; não é desejo seu que um tenha muito mais do que o outro, ou que alguém diga: «Eu tenho um lugar ao sol, mas o teu lugar, esse, é a sombra!» Todos temos um lugar ao sol.


Quando Deus guarda tudo na sua mão justa, não há lutas nem miséria. O Papalagui, esse manhoso, quer fazer-nos crer o seguinte: «Nada pertence a Deus! É a ti que pertence tudo quanto consigas abarcar com as tuas mão!» Não demos ouvidos a estas palavras insensatas e atenhamo-nos à nossa justa convicção de que tudo pertence a Deu!


 


Nota de Erich Scheurmann:


 


 


Se eu disser ao leitor que os indígenas de Samoa vivem em perfeita comunidade de bens, fácil lhe será entender por que é que Tuiavii adopta um tom desprezável da nossa concepção de propriedade. Os conceitos «meu» e «teu» não vigoram em Samoa, na acepção que nós lhes damos. Aquando das minhas viagens, sempre os indígenas partilharam muito naturalmente comigo o seu tecto, a sua esteira, a sua comida. Sucedeu-me frequentemente um chefe de aldeia dizer-me, ao receber-me pela primeira vez: «O que a mim me pertence, pertence-te a ti também!» Os habitantes das ilhas não têm a noção de «roubo». Tudo pertence a todos. Tudo pertence a Deus.


 


(1) Senhor.


 


 


O Grande Espírito


pode mais do que a máquina


 


O Papalagui faz imensas coisas que nós não somos capazes de fazer, que nós nunca perceberemos, que são, para a nossa cabeça, como que pesadas pedras. São coisas que nós não invejamos e que, quanto muito, talvez consigam espantar os mais fracos de entre nós e inspirar-lhes uma falsa humildade. Observemos, pois, sem receio, essas coisas singulares que o Papalagui sabe fazer.


O Papalagui tem o dom de fazer de tudo uma lança e uma moca. Agarra no raio fulminante, no fogo escaldante e na água veloz e doma-os à sua vontade. Aprisiona-os, dá-lhes ordens; e eles obedecem, passam a ser os seus guerreiros mais valorosos. Sabedor de todos os seus segredos, consegue tornar o raio fulminante ainda mais pronto e certeiro, o fogo escaldante ainda mais escaldante e a água veloz ainda mais veloz.


O Papalagui parece ser de facto o que trespassa o céu (1), o enviado de Deus, pois domina céu e terra a seu bel-prazer. É, a um tempo, peixe, pássaro, verme e cavalo. Faz buracos na terra, através da terra e por baixo dos mais largos rios. Insinua-se por por entre rochas e montanhas. Amarra rodas de ferro aos pés e caminha mais depressa do que o mais veloz cavalo. Eleva-se nos ares. Sabe voar. Vi-o planar no céu como um alcatraz. Tem uma enorme canoa para andar debaixo de água. Voa, com a ajuda de outra canoa, de nuvem em nuvem.


Eu sou apenas, queridos irmãos, uma testemunha que proclama a verdade e, assim, deveis acreditar nas palavras do vosso servo, ainda que o bom senso vos leve a duvidar do que vos digo. Porque as obras do Papalagu são grandes e dignas de admiração. E medo tenho eu que muitos de vós percam a confiança em si próprios, sabendo da existência de um tal poder. Se quisesse contar-vos tudo quanto os meus olhos viram, por onde principiar?


 


Todos vós conheceis a grande canoa a que o Branco chama navio. Pois não se parece ela com um enorme peixe gigante? Como é possível ele conseguir ir mais depressa de uma ilha para a outra do que uma das nossas canoas, conduzidas pelos mais fortes remadores? Reparastes na ponta da barbatana da cauda, quando ela está em movimento? Fustiga e remexe a água tal e qual como os peixes da lagoa. É essa grande barbatana que faz avançar a enorme canoa. Que tal seja possível, é esse precisamente o segredo do Papalagui. Um segredo oculto no bojo do peixe gigante. É aí que se encontra a máquina que dá tanta força à barbatana, e é a máquina que encerra toda essa força. Não sou suficientemente forte para poder explicar-vos o que é uma máquina. Uma coisa é certa: come pedras negras e em contrapartida dá força. Nunca um ser humano será capaz de ter tanta força como ela.


A máquina do Papalagui é a maior das suas mocas. Se a gente der ao Papalagui o tronco de um ifi da floresta virgem, dos mais resistentes que houver, a mão da máquina quebrá-lo-á tão facilmente como a mãe parte o fruto do taro para dar aos filhos. O grande masgo da Europa é a máquina. Possante é a sua mão, que nunca se cansa. Consegue cortar, se quiser, cem, ou mil tanoas, num só dia. Vi-a tecer panos tão finos e macios como se tivessem sido tecidos pelos dedos hábeis de uma graciosa donzela. Tecia de manhã à noite e expelia tantos panos que estes se amontoavam numa grande pilha. Miserável e digna de dó é a nossa força, em comparação com a enorme força da máquina.


O Papalagui é um mago. Quando a gente canta uma canção, ele consegue apanhá-la e reproduzi-la em qualquer altura que se queira ouvi-la. Pondo uma chapa de vidro diante de uma pessoa, tira-lhe a imagem e é capaz de reproduzi-la mil vezes, caso queira. Mas ainda vi maiores milagres. Já vos disse que o Papalagui apanhava os raios do céu. É exactamente assim que as coisas se passam. Apanha-os, e dá-os depois a uma máquina que os mastiga, os engole e os torna a cuspir, à noite, sob a forma de mil estrelinhas, pirilampos e luas anãs. Seria fácil para o Papalagui inundar, durante a noite, as nossas ilhas de uma luz tão clara e brilhante que a gente se julgaria em pleno dia.


Também, amiúde, força os raios a saírem da máquina e a prestarem-lhe serviços; fás-los ir até onde ele quer, com uma mensagem para os seus irmãos distantes. Os raios obedecem e levam a mensagem.


O Papalagui aumentou a força de todos os seus membros. Alongou as suas mãos para lá dos mares, até às estrelas, e tornou os seus pés mais rápidos que o vento e as ondas. O seu ouvido é capaz de aperceber um sussurro em Savaii e a sua voz possui asas de pássaro. Os olhos dele até de noite vêem. Vê através do homem como se a carne deste fosse água líquida, e distingue as inundícies que há no fundo da água.


De tudo isto fui eu testemunha. Mas o que aqui vos digo é apenas uma pequena parte do tudo quanto os meus olhos viram, e me deixou estupefacto. A grande ambição do Branco é, podeis crer, realizar sempre novos e cada vez mais imponentes milagres. E assim, milhares de Brancos passam as noites em dificílimas pesquisas, a ver se descobrem como hão-de vencer Deus. Pois é isso na realidade o que está em causa: o Papalagui aspira a tornar-se Deus. Gostaria de destronar o Grande Espírito e apropriar-se de todos os seus poderes. Deus é, no entanto, maior e mais poderoso do que o maior dos Papalaguis, mais as suas máquinas. É Deus quem decide qual de nós irá morrer, e quando morrerá. É a ele que em primeiro lugar obedecem o sol, a água e o fogo, e não será nos nossos dias que um Branco vai domar à sua vontade o nascer da lua e a direcção dos ventos.


 


Enquanto assim for, nenhum daqueles milagres terá grande importância. Muito fraco será, queridos irmãos, aquele de nós que se deixar impressionar por tais milagres, aquele que, subjugado pelas suas obras, se prosternar perante o Branco, aquele que se sentir pobre e desprezível por não ser capaz de conseguir obrar coisas por suas próprias mãos e espírito. Pois ainda que esses milagres do hábil Papalagui se afigurem, aos nossos olhos, espantosos, vistos de perto, à clara luz do sol, não têm mais importância do que o simples acto de trabalhar uma moca ou de entrançar uma esteira. O que o Papalagui faz assemelha-se, ao fim e ao cabo, às brincadeiras de uma criança na areia. Nada do que o Branco faz pode igualar, de longe que seja, as maravilhas do Grande Espírito.


Não há dúvida de que as cabanas pertencentes aos aliis mais altamente colocados - e a que eles chamam palácios - são enormes e estão esplendidamente adornadas; não há dúvida de que as altas cabanas que eles edificaram em honra de Deus, cabanas às vezes mais altas do que o cume do Tofua (2), mais magníficas são ainda - mas tudo isso é pesado e tosco; nunca dá aquela sensação de vida e calor que dão os ibiscos, com as suas flores cor de fogo, ou as folhas de uma palmeira, ou uma floresta de corais, ébria de formas e cores. Nunca o Papalagui teceu pano tão fino como a teia que Deus faz tecer à aranha. A construção de uma máquina exige menos génio e minúcia do que a criação de uma única formiga das areias, daquelas que vivem nas nossas cabanas.


Dizia eu que o Branco se eleva até às nuvens como um pássaro. Mas a gaivota, essa, voa mais alto e mais depressa do que ele, mesmo em plena tempestade, e as asas saem-lhe de facto do corpo, ao passo que as do Papalagui são falsas, partem-se e casem com facilidade.


Assim, todos esses milagres têm um ponto fraco oculto em qualquer parte. Não há máquina que não necessite de ser vigiada e impulsionada. Todas elas contêm uma secreta maldição. Pois se é verdade que a potente mão da máquina é capaz de fazer tudo quanto é possível, também é verdade que devora o amor que existe em todo o objecto saído das nossas próprias mãos. De que serviria a mim uma canoa ou uma moca fabricadas por uma máquina? A máquina é um ser sem vida, frio, incapaz de falar do seu trabalho, de sorrir quando o terminou e de levar o que acabou de fazer ao pai e à mãe, para eles também se alegrarem. Como poderia eu gostar da minha canoa como gosto se, sem que eu fosse para aí chamado, uma máquina ma pudesse reconstruir a qualquer momento? A grande maldição que a másquina encerra, é que o Papalagui deixou de gostar de toda e qualquer coisa, já que a máquina tudo pode reconstruir de imediato. Para que a máquina obre esses milagres sem vida nem calor, tem ele que dar-lhe o seu coração.


Só o Grande Espírito dispõe das forças do céu e da terra e as reparte como muito bem lhe apraz. Não é ao homem que cabe reinar assim, e não é impunente que o homem se esforça por ser peixe, ave, cavalo e verme. Isso traz-lhe muito menos proveitos do que ele próprio julga. Se eu atravessar uma aldeia a cavalo, não há dúvida de que vou mais depressa, mas se for a pé vejo mais coisas e os meus amigos podem convidar-me a entrar na sua cabana. Raramente se ganha em chegar mais depressa ao fim da viagem. O Papalagui corre sempre para um determinado fim. A maior parte das suas máquinas destina-se a faze-lo atingir mais depressa esse fim. E mal ele o atinge, logo parte com outro destino. O Papalagui leva, pois, toda a vida a correr até perder o fôlego, e cada vez mais se esquece do que é andar, passear, caminhar alegremente para um fim que virá ao nosso encontro sem que o tenhamos procurado.


 


Por isso eu vos digo: a máquina é um belo brinquedo para essa criança grande que é o Papalagui. Os seus artifícios não nos devem atemorizar. O Papalagui ainda não construiu, até à presente data, qualquer máquina que consiga preservar-nos da morte. Ainda nada fez ou criou que seja superior ao que Deus incessantemente faz e cria. Nenhuma dessas suas máquinas, desses seus artifícios e feitiçarias foi capaz ainda de prolongar a vida, de tornar uma pessoa mais alegre e feliz. Apeguemo-nos pois às maravilhosas máquinas desse artista que é Deus e desprezemos o Branco, quando ele se quer fazer passar por Deus.


 


(1) Papalagui designa o Branco, o Estrangeiro, mas traduzido literalmente significa «o que trspassa o céu». O primeiro missionário branco a abordar Samoa ia num barco à vela. Vendo, de longe, o barco, tomaram os indígenas as suas velas brancas por um buraco feito no céu, pelo qual o Branco descia até eles; e foi assim que este «trespassou» o céu.


(2) Alta montanha de Upolu.


 


 


Das profissões do Papalagui


e da confusão que daí resulta


 


Todos os Papalaguis têm uma profissão. É difícil explicar-vos o que isso é. É qualquer coisa que uma pessoa devia ter vontade de fazer, mas que raramente tem. Ter uma profissão significa fazer sempre a mesma coisa, fazer uma coisa tantas vezes que se acaba por fazê-la sem esforço e de olhos fechados! Se as minhas mãos só fizerem cabanas ou esteiras, terei, como profissão, a de construtor de cabanas ou tecelão de esteiras.


Há profissões para os homens e profissões para as mulheres. Lavar a roupa na lagoa e fazer brilhar as canoas para pôr nos pés, são profissões de mulheres; conduzir uma piroga no mar e caçar pombos na floresta virgem são profissões de homem. A mulher abandona em geral a sua profissão quando se casa, ao passo que o homem é precisamente nessa altura que se consagra a ela. Qualquer alii só dará a sua filha em casamento a um pretendente que exerça já uma profissão. Um Papalagui sem profissão não pode casar-se. Um Branco tem a obrigação e o dever de ter uma profissão.


É por essa razão que, muito antes ainda das tatuagens da puberdade, todos os rapazes brancos são obrigados a decidir do trabalho que irão fazer para o resto da vida. Chama-se a isso escolher uma profissão. É uma coisa muito importante e na aiga fala-se tanto nisso como no que se deseja comer no dia seguinte. Se o jovem alii escolher como profissão tecer esteiras, um velo alii levá-lo-á a um tecelão de esteiras, ou seja, um homem que consagra todo o seu tempo à tecelagem de esteiras. Este mostra então ao rapaz como se tece uma esteira. Ensina-o a fazer uma esteira sem precisar sequer de olhar para o que está a fazer. Às vezes o rapaz leva imenso tempo para o conseguir. Quando finalmente o consegue, abandona o mestre e diz-se então que «tem uma profissão»!


Se o Papalagui, mais tarde, se der conta de que prefere construir cabanas a tecer esteiras dizem: «Enganou-se na profissão!» o que equivale a dizer: «Aquele falhou o alvo!» Oraisso é uma coisa grave, pois mudar assim de profissão é contrário à moral. Qualquer honrado Papalagui correrá o risco de perder a sua honra se disser: «Não posso fazer esse trabalho, pois não sinto qualquer satisfação com isso!» ou «Quando faço esse trabalho, as mão não me obedecem!»


 


Há, entre os Papalaguis, tantas profissões quantas pedras há na lagoa. O Papalagui faz de cada acto uma profissão. Quando apanha as folhas caídas da árvore do pão, exerce uma profissão. Quando alguém lava as malgas onde a gente come, exerce uma profissão ainda. Desde que se faça qualquer coisa, com as mãos quer com a cabeça, exerce-se uma profissão. É igualmente profissão ter ideias ou olhar para as estrelas. O Papalagui transforma tudo quanto o homem é capaz de fazer numa profissão.


Quando um Branco diz: «Sou tussi-tussi! (1), isso é a sua profissão; não faz outra coisa que não seja escrever cartas umas atraás das outras. Não é ele que enrola a sua esteira e a prende numa trave, não é ele que vai à cabana-cozinha cozer um fruto, não é ele também que lavará a sua malga. Come peixes, mas não vai à pesca, come frutos, mas nunca os apanha; escreve tussi atrás de tussi, pois tussi-tussi é a sua profissão. Da mesma maneira, todos aqueles actos são outras tantas profissões: enrolador e arrumador de esteiras, cozinheiro de frutos, lavador de malgas, pescador de peixes, colhedor de frutos. Só a profissão confere a cada um o direito de exercer uma actividade.


Assim se explica o facto de a maior pasrte dos Papalaguis apenas saber fazer o que constitui a sua profissão. O chefe de tribo mais importante não sabe prender a sua rede a uma trave, nem lavar a sua malga, isso apesar da grande sabedoria do seu espírito e da força do seu braço. Assim se explica também que aquele que sabe escrever tussis de toda a maneira e feitio, não seja, de igual modo, capaz de conduzir uma canoa no lago, e vice-versa. Exercer uma profissão significa saber ou correr, ou saborear, ou cheirar, ou lutar, mas sempre e em qualquer caso saber fazer um só e única coisa.


Este saber-fazer-apenas-uma-coisa é uma grande fraqueza e apresenta grandes perigos; pois qualquer pessoa pode, um dia, ver-se obrigada a atravessar a lagoa de canoa.


O Grande Espírito deu-nos mãos para podermos apanhar os frutos das árvores e os bolbos de taro nos pântanos. Deu-nos mãos para protegermos o nosso corpo dos inimigos, para saborearmos as delícias da dança, do jogo e de todos os demais divertimentos, e não, decerto, para nos pormos só a construir cabanas, só a apanhar frutos ou só a desenterrar bolbos; antes pelo contrário, para que elas estejam sempre ao nosso dispor e nos permitam defendermo-nos em quaisquer circunstâncias.


O Papalagui é incapaz de compreender isto. Para vermos quão falso é o seu comportamento, completamente falso e contrário aos mandamentos do Grande Espírit, basta olharmos para os Brancos que, incapazes de correr porque a sua profissão os impede de se mexerem, criam uma barriga igual à dos puaa (2); basta ver como são incapazes de levantar ou lançar uma azagaia, por terem a mão demasiado habituada a segurar o osso que serve para escrever e estarem todo o tempo sentados à sombra a escrever tussis; basta ver como são incapazes de impor uma directriz a um cavalo selvagem, só por estarem sempre a olhar para as estrelas ou desenterrar ideias da cabeça.


 


É raro que um Papalagui adulto saiba ainda dar cambalhotas ou fazer cabriolas como uma criança. Ao andar arrasta o corpo, como se houvesse alguma coisa a entravar-lhe os movimentos. Nega ele que isto seja uma fraqueza e pretende que correr, dar cambalhotas ou fazer cabriolas é contrário à dignidade de um indivíduoque se preze. Mas é uma explicação falsa, esta; na realidade, os seus ossos endureceram e tornaram-se rígidos e os músculos perderam toda a flexibilidade, pois a profissão dele os condenou ao sono e à morte. A profissão é, também ela, um aitu que dá cabo da vida e promete belas coisas ao homem, ao mesmo tempo que lhe suga o sangue.


A profissão prejudica o Papalagui de outras maneiras ainda, revelando, também com isso, o seu carácter de aitu.


Que alegria não dá fazer uma cabana! Que alegria deitar as árvores abaixo, na floresta, transformá-las em barrotes, pôr os barrotes de pé, armar o tecto por cima e, depois de se prenderem bem os barrotes, as traves e todas as outras partes com fio de coco, cobrir finalmente o tecto com folhas secas de cana de açúcar! Nem vale a pena falar na alegria que toda a aldeia sente durante a construção colectiva da cabana do chefe da tribo: é uma grande festa, em que até mesmo as mulheres e as crianças participam.


Vós que diríeis agora se só alguns homens da aldeia tivessem o direito de ir à floresta abater as árvores e cortar os barrotes? E se esses não tivessem o direito de ajudar a pôr os barrotes de pé, porque a sua profissão é só abater árvores e cortá-las em barrotes? E se os que põem os barrotes de pé não tivessem o direito de cruzar as traves do tecto, porque a sua profissão é só pôr os barrotesde pé? E se os que cruzam as traves do tecto não tivessem o direito de ajudar a cobri-lo com folhas de cana do açúcar, porque a sua profissão é só cruzar as traves? Nem sequer poderiam ir todois à procura de seixos ao longo da praia, para revestir o chão, pois só teriam direito a fazê-lo os que tivessem tal profissão! e só os habitantes da cabana teriam o direito de festejar a sua inauguração, e não todos aqueles que juntos a construíram!


Vejo que isto vos faz rir e tenho a certeza de que direis o mesmo que eu: «Se apenas temos o direito de fazer uma só coisa e não podemos participar em todos os trabalhos para os quais é necessária a força do homem, não sentiremos nem metade do prazer, se é que chegamos mesmo a sentir algum!» Estou certo de que chamaríeis louco a qualquer um que vos mandasse servir-vos das mãos para fazer um único trabalho, como se todos os outros membros do vosso corpo e os vossos sentidos estivessem doentes ou mortos.


É disso, precisamente, que provém a moléstia mais grave de todas quantas o Papalagui sofre. É agradável ir buscar água à ribeira uma ou várias vezes ao dia; mas quem tiver que ir buscá-la todos os dias e a todas as horas, desde o nascer ao pôr-do-sol, até as forças o abandonarem, quem vai e torna a ir, sem descanso, à ribeira, acaba por atirar, de raiva, o cântaro para bem longe, a fim de libertar o corpo de tais cadeias. De facto, nada há de mais penoso para o homem do que fazer sempre a mesma coisa.


 


Ainda se os Papalaguis fossem, todos eles, buscar quotidiananamente água à fonte, talvez chegassem a sentir prazer com isso. Mas não! Muitos há que passam a vida a levantar e a baixar a mão ou a empurrar um pau, numa casa suja sem sol nem luz. O que fazem não lhes exige esforço, nem lhes dá prazer; no entanto, segundo as maneira de ver do Papalagui, não podem, de modo algum, deixar de levantar e baixar a mão ou de carregar numa pedra, pois é isso que irá pôr em movimento ou regular uma máquina que faz, por exemplo, aros caiados, revestimentos para o peito, conchas para os panos ou qualquer coisa do géner. Há menos palmeiras nas nossas ilhas do que Europeus com o rosto cor de cinza; e isso porque o seu trabalho não lhes causa qualquer prazer, devora toda a sua alegria e nem lhes dá um fruto ou uma folha, sequer, com que possam regozijar-se.


É por isso que os indivíduos de diferentes profissões se odeiam ferozmente uns aos outros. Há, no coração de todos eles, a modos como que um animal preso que se encabrita sem nunca conseguir soltar-se. Ficam todos roídos de inveja e de ciúme ao compararem a sua profissão com a dos outros; pois eles estabelecem uma diferença entre profissões nobres e profissões baixas, se bem que todas as profissões não passem, no fundo, de actividades parciais. Com efeito o homem não é constituído unicamente por uma mão, por um pé ou por uma cabeça: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Mão, pé, cabeça foram feitos para estarem juntos. Um ser humano saudável sente-se realmente feliz quando todas as partes do seu corpo vivem em harmonia com os seus sentidos, e não quando apenas uma parte do seu corpo vive, e todas as outras estão mortas. Isso perturba, desespera e faz uma pessoa adoecer.


O Papalagui vive desvairado por causa da profissão que tem. É claro que não o quer reconhecer. E se ele ouvisse as minhas palavras, de certo me chamaria doido, a mim que, dirá ele, pretendo emitir um juízo sem ter capacidade para o fazer, pois nunca tive qualquer profissão nem trabalhei como um Europeu.


O Papalagui nunca conseguiu provar-nos porque razão será justo e razoável trabalhar mais do que o necessário imposto pela vontade de Deus, que vem a ser: ter o suficiente para comer, um tecto que nos abrigue, e prazer em participar nas festas, no largo da aldeia. É um trabalho que pode realmente parecer limitado, assim como a nossa vida muito pobre de profissões. Em contrapartida, é sempre com alegria, e nunca acabrunhado, que qualquer habitante destas inúmeras ilhas, qualquer irmão nosso, digno desse nome, faz o seu trabalho. Pois se assim não fosse preferiria nada fazer.E é isso que nos diferencia dos Brancos. O Papalagui, quando fala do seu trabalho, suspira como se estivesse sob um fardo esmagador; os jovens de Samoa é a cantar que vão para os campos de taro, as jovens é a cantar que lavam os panos na água corrente da ribeira. O Grande Espírito não quer, de certeza, que nos tornemos cor de cinza por causa da profissão, que nos arrastemos como uma tartaruga ou rastejemos como um mulusco do fundo do lago. Quer ver-nos, isso sim, firmes e altaneiros em tudo quanto fizermos, sem nunca perdermos a alegria do olhar e a agilidade dos membros.


 


(1) Tussi - carta; tussi-tussi - escrivão público.


(2) Porcos.


 


 


Do lugar onde se simula a vida


e dos muitos papéis


 


 


Queridos irmãos do vasto mar: muitas coisas teria este vosso humilde servo para vos contar, se fosse a falar-vos de tudo quanto viu na Europa. Ainda que os meus discursos mais parecessem uma torrente que corresse de manhã à noite, nem mesmo assim ficaríeis a saber toda a verdade, pois a vida do Papalagui pode comparar-se ao mar: não se lhe vê o princípio nem o fim. Apresenta, como o mar, muitas ondas e ressacas, pode ser tempestuosa, sorridente ou sonhadora. Assim como um homem não pode esvaziar o mar com a concha da mão, assim também o meu insignificante espírito não pode abarcar o grande mar que a Europa é.


Mas desejo, ao menos, falar-vos disso, pois tal como o meu mar não pode existir sem água, assim também a vida na Europa não pode existir sem aquele lugar onde se simula a vida, e sem os muitos papéis. Se o Papalagui se visse privado dessas duas coisas, seria como o peixe que a maré atirou para a areia e estrabucha agora à doida, sem poder já nadar nem viver a seu bel-prazer.


Oh! o lugar onde se simula a vida! Não é fácil descrever-vo-lo de modo a ficardes com uma noção clara do sítio a que o Branco chama cinema. Em todas as aldeias europeias existe esse sítio misterioso que as pessoas preferem à casa do missionário, com que até mesmo as crianças sonham e ocupam o espírito.


O cinema é uma cabana nuito maior ainda do que a maior das cabanas de qualquer chefe de tribo de Upolu. Lá dentro está escuro, mesmo em pleno dia, tão escuro que é impossível reconhecermo-nos uns aos outros quando lá nos encontramos. Não se vê nada quando se entra, e quando se sai vem-se completamente ofuscado. As pessoas entram lá à socapa e procuram o caminho tacteando ao longo das paredes, até uma rapariga vir ao seu encontro com um pequeno fogacho e as conduzir até onde houver lugar. Sentados no escuro, os Papalaguis apertam-se uns contra os outros, sem conseguirem ver quem têm ao lado; a sala escura está cheia de gente que não diz uma palavra, sentada numas tábuas estreitas voltadas todas elas para uma parede.


Ouve-se, então, vindo da parte de baixo dessa parede, um som muito forte e repenicado, e vê-se, depois de os olhos se habituarem à escuridão, um Papalagui sentado, à luta com um baú. Bate-lhe com as mãos, espoalmando os dedos em cima de umas linguetas pretas e brancas que há no baú. De todas as vezes que ele lhes toca, essas linguetas soltam gritos agudos nas suas várias vozes, fazendo uma barulheira infernal e selvagem, como quando há uma grande zaragata na aldeia.


Esse chinfrim tem por objectivo distrair e enfraquecer os nossos sentidos, para que nós acreditemos no que estamos a ver e não duvidemos de que seja real. Um raio de luz, branco como o luar, aparece então na parede: e no meio dessa luz surgem uns homens, homens autênticos, semelhantes a verdadeiros Papalaguis, e vestidos como eles. Mexem-se, andam para um lado e para o outro, correm e saltam como se vê fazer por toda a Europa. É como a imagem da lua reflectindo-se no lago: é a lua, mas na realidade não é ela. O mesmo se dá com as imagens que se vêem na parede. Abrem a boca, temos a certeza de que estão a falar, e no entanto não se ouve um som, um só que seja, mesmo escutando com a máxima atenção. É muito triste isto de não se ouvir nada, e é sobretudo por esse motivo que o Papalagui bate no baú daquela maneira: tenta fazer-nos crer que é por causa do barulho que faz que nós não ouvimos as pessoas a falarem. E assim surgem de vez em quando na parede uns textos a explicar o que o Papalagui disse ou vai dizer.


 


Mas nem por isso aquelas pessoas na parede deixam de ser uma aparência de seres humanos. Se a gente lhes quisesse tocar, logo veria que isso era impossível, que são feitas de luz, apenas. Estão ali para mostrar ao Papalagui as suas próprias dores e alegrias, as suas loucuras e fraquezas. Pode assim o Papalagui ver de muito perto as mais belas mulheres e os mais belos homens. Embora sejam mudos, pode ver os seus olhos a brilhar, e os seus gestos. Eles parecem olhá-lo e falar com ele. Pode ver também sem mais incómodos, e tão de perto como aos seus semelhantes, os chefes de tribo de mais alta estirpe. Toma parte em grandes festins, em fonos, bem como noutras festas, e tem a sensação de lá estar também, de participar de fact naquele repasto e naquela festa. Mas também pode ver um Papalagui roubar a donzela de uma outra aiga ou uma jovem ser infiel ao seu amigo. Pode ver um homem furioso atirar-se ao pescoço de um rico alii, os dedos do homem a enterrarem-se na carne do pescoço, pode ver os olhos do alii a saírem das órbitas, e o alii a morrere o homem furioso a arrancar o metal redondo e o papel forte do pano do alii.


Equanto os seus olhos contemplam tais manifestações de alegria e de horror, deverá o Papalagui permanecer calmamente sentado; não poderá censurar à jovem a sua infidelidade, nem correr em socorro do rico alii. Isso, porém, não o faz sofrer: olha para tudo aquilo com deleite, como se não tivesse coração. Não sente terror nem repulsa. Observa tudo como se fosse um ser de outra espécie. Porque o espectador está sempre convicto de que ele próprio é melhor do que os homens que vê no meio da luz, convicto de que numca cometerá os actos de loucura que ali se lhe deparam. Deixa-se, pois, ficar, sem se mexer, com a respiração suspensa, olhos fixos na parede. Quando vê um homem de nobre e valoroso coração, essa imagem grava-se-lhe no espírito, e emtão diz: «É a minha imagem!» Fica sentado sem se mexer, no seu assento de pau, a olhar fixamente para a parede alta e lisa sobre a qual vacila uma luz enganadora, projectada por um mágico através de uma greta estreita, existente na parede oposta. As imagens simulam a vida.


E é isso, essas imagens que não respiram, que não vivem na realidade, que dá o maior dos prazeres ao Papalagui. Naquela sala às escuras, sem sentir qualquer vergonha e sem que ninguém veja o seu olhar, ele pode entregar-se a uma vida fictícia. O pobre pode ali passar por rico, e o rico por pobre, o doente julgar-se de boa saúde, o fraco crer-se forte, Cada um pode, no escuro, fazer-se passar por quem quiser e viver, nessa vida simulada, coisas que nunca viveu e que janais viverá.


Tornou-se uma grande paixão para o Papalagui entregar-se assim a essa vida fictícia; essa paixão chega a ser de tal modo forte, que o leva a esquecer a sua verdadeira vida. É uma paixão doentia, pois um homem a sério não aceita viver uma vida fictícia numa sala escura; prefere a vida autêntica, ao calor e à luz do sol. Consequência dessa paixão é que muitos dos Papalaguis, ao saírem dali, daquele sítio onde se simula a vida, já não conseguem ver a diferença que há entre a vida simulada e a vida real; ficam transtornados: julgam-se ricos quando são pobres, ou belos quando são feios; praticam malfeitorias que nunca na vida real teriam praticado, mas que agora, por já não verem a diferença que há entre o real e o que o não é, são levados a praticar. É um estado muito semelhante ao que vós já presenciastes, quando o Europeu, depois de beber demasiado kava europeu, pensa que caminha sobre as ondas.


 


Os muitos papéis mergulham também o Papalagui numa espécie de embriaguês e de delírio. Que vêm a ser esses muitos papéis? Imaginai uma esteira de fina tapa branca, dobrada uma vez, depois dividida, dobrada uma vez mais, e coberta, por todos os lados, de minúsculas inscrições: e aí tendes esses muitos papéis a que o Papalagui chama jornais.


É nesses papéis que está inscrito o grande saber do


Papalagui. Para encher todos os dias a cabeça e alimentá-la como deve ser, mergulha-a ele, de manhã à noite, nos jornais; isto para pensar melhor e ser mais rico de ideias: é como o cavalo que galopa mais depressa quando comeu muitas bananas e tem a barriga cheia. Ainda o alii está a dormir na sua esteira e já uma série de mensageiros calcorreiam a terra, distribuindo os muitos papéis. É a primeira coisa para a qual se estende a mão do Papalagui, mal ele sai do sono. O Papalagui lê. Mergulha os olhos no que os muitos papéis contam. E todos os Papalaguis fazem o mesmo: lêem. Lêem o que os chefes de tribo de mais alta estirpe, ou os seus porta-vozes, disseram dos seus fonos.Isso vem inscrito, palavra por palavra, na tal esteira, mesmo quando eles disseram uma grande palermice. Também lá vem descrito o género de pano que traziam ao falarem, e o que comeram, e o nome do seu cavalo, e se sofrem ou não de elefantíase (1), se são fracos do juízo.


O que esses Papalaguis contam equivale, na nossa terra, a mais ou menos isto: «Esta manhã, o polé nuu (2) de Matautu, depois de uma noite bem dormida, começou por comer um resto de taro da véspera e depois foi pescar. Regressou à cabana por volta do meio-dia, deitou-se na esteira, leu a Bíblia e cantou até à noite. Sina, sua mulher, começou por dar de mamar ao filho, foi depois banhar-se no rio, encontrou, de regresso a casa, uma linda flor de puá, com a qual enfeitou os cabelos antes de entrar na cabana... etc.. etc....»


Tudo quanto se passa, tudo o que os homens fazem, ou não, vem ali escrito: os seus bons e os seus maus pensamentos, o facto de se ter morto uma galinha ou um porco, ou o facto de se ter construído uma nova canoa. Nada se passa no seu vasto país que não venha fielmente descrito nas esteiras de papel. A isso chama o Papalagui «estar ao corrente de tudo». Ele quer estar sempre ao corrente de tudo quanto se passa na sua terra desde o nascer ao pôr-do-sol e fica indignado quando qualquer coisa lhe escapa. Está sempre ávido de ler os papéis, muito embora lá se narrem também horríveis acontecimentos, que um homem sensato deveria querer esquecer imediatamente. Além disso, tudo quanto é mau e faz mal vem descrito com mais precisão do que aquilo que é bom, contado até ao mais pequeno pormenor, como se não fosse mais importante e mais gostoso dar conta do bem, em vez do mal.


Se leres o jornal, não necessitas de ir a Apolima, a Manono ou a Savatû para saber o que fazem e pensam os teus amigos, ou como se divertem. Podes ficar tranquilamente estendido na tua esteira, uma vez que os muitos papéis te contam tudo. Parece uma coisa muito boa e agradável, mas isso não passa de uma ilusão. Pois se encontrares o teu irmão e se já ambos tiverem mergulhado a cabeça nos muitos papéis, ficareis, tu e ele, sem qualquer notícia interessante para dar um ao outro, porque ambos têm a mesma coisa dentro da cabeça; e emtão ou vos calais, ou vos limitais a repetir o que dizem os muitos papéis. Além disso, é uma sensação muito mais intensa partilharmos com alguém dores e alegrias, do que ouvi-las contar a um estranho que nada viu com os seus próprios olhos.


 


Os jornais são maus para o nosso espírito, não só porque relatam o que se passa, mas também porque nos dizem o que devemos pensar disto ou daquilo, dos nossos chefes de tribo ou dos chefes de tribo doutras terras. e de todos os cacontecimentos e acções dos homens. Os jornais gostariam que todos os homens pensassem o mesmo. Atacam a cabeça e os pensamentos do indivíduo. Pretendem que toda a gente tenha cabeça e pensamentos iguais aos deles. E sabem como levar isso a cabo. Quem leia, pela manhã, os muitos papéis, saberá o que, ao meio-dia, o Papalagui tem na cabeça e em que pensa.


Um jornal é também uma espécie de máquina que todos os dias fabrica uma quantidade de novos pensamentos, muito mais do que os que uma só cabeça conseguiria produzir. Esses pensamentos são, na sua grande maioria, fracos, destituídos de força e de altivez: enchem a cabeça com muito alimento, mas nenhum forteficante. Também se podia igualmente encher a cabeça de areia. O Papalagui atafulha a cabeça com esses muitos papéis, inútil alimento. Mal acabou de consumir um, e já se prepara para engolir outro. A sua cabeça assemelha-se muito a uma região pantanosa, afogada no seu próprio lodo, onde já nada cresce de verde e de fecundo, onde só há miasmas e nuvens de insectos que picam.


Os sítios onde se simula a vida e os muitos papéis fizeram do Papalagui o que ele é: um ser fraco e meio perdido, que preza o que não é real, que perdeu a noção do real, que confunde a luz com a sua imageme a vida com uma esteira coberta de inscrições.


 


(1) Espécie de doença dos tecidos, que faz inchar os membros.


(2) Juíz.


 


 


A grave doença


de estar sempre a pensar


 


Quando a palavra «espírito» sai da boca do Papalagui, os seus olhos tornam-se grandes, redondos e fixos; soergue-se-lhe o peito, respira fundo e toma a posse de um guerreiro que venceu o inimigo. Tudo isto porque tem um orgulho muito especial nesse tal «espírito». Não se trata do Grande Espírito omnipotente a que os missionários chamam «Deus» e de que nós todos somos uma mísera reprodução, mas sim do espírito mais pequeno que faz o homem pensar.


Quando olho, daqui, para a mangueira (1) que há por detrás da igreja, não estou a usar do espírito; estou, única e simplesmente, a vê-la. Mas se me dou conta de que ela é mais alta do que a igreja, aí já entra o espírito. Não basta pois olhar para uma coisa, há também que tirar qualquer saber. É esse saber que o Papalagui exerce do nascer ao pôr-do-sol. O seu espírito está sempre carregado como um cano de fogo ou como uma cana de pesca lançada à água. E sente pena de nós, povos das muitas ilhas, por não exercermos esse saber. Somos, a seu ver, pobres de espírito e tão estúpidos como um animal em estado selvagem.


 


É verdade que nós exercemos pouco o saber a que o Papalagui chama «pensar», mas a questão que se põe é a de saber qual dos dois é mais estúpido, se aquele que não pensa muito ou se aquele que pensa em demasia. O Papalagui não pára de pensar: «A minha cabana é mais pequena do que a palmeira; a palmeira verga-se por causa da tempestade; ou: isto é o fragor da tempestade!» É assim que ele pensa no que o preocupa. Mas também ele próprio é objecto dos seus pensamentos: «Eu sou pequeno; o meu coração alegra-se sempre à vista de uma rapariga; gosto de partir em malaga, etc.».


Isso é bom e divertido e talvez tenha alguma utilidade pessoal para quem goste dessa íntima brincadeira. Mas o Papalagui pensa tanto, que o acto de pensar se tornou um hábito, uma necessidade, e até mesmo uma coacção. Vê-se obrigado a pensar continuamente. Só muito a custo consegue não fazê-lo e deixar viver todas as partes do seu corpo ao mesmo tempo. Na maior parte do tempo vive apenas com a cabeça, enquanto os sentidos dormem um profundo sono. Muito embora isso o não impeça de andar normalmente, de falar, de comer e de rir, permanece fechado na prisão dos seus pensamentos - os quais são os frutos da reflexão. Deixa-se por assim dizer embriagar pelos seus próprios pensamentos. Quando brilha um belo sol, logo ele pensa: «Que belo sol que está agora!» E continua a pensar, sempre a pensar: «Mas que belo sol!» Ora isso é falso, absolutamente falso, é uma aberração, pois quando o sol brilha, vale mais não pensar em nada. Qualquer Samoano sensato irá estender e aquecer o seu corpo ao sol, sem mais reflexões. E goza do sol não só com a cabeça, mas também com as mãos, com os pés, com as coxas, com o ventre, em resumo, com o corpo todo. Deixa a sua pele e os seus membros pensarem por si próprios, e eles pensam à sua maneira, por certo diferente da da cabeça. Os pensamentos barram amiúde o caminho do Papalagui, como um grande bloco de lava impossível de deslocar. Se pensa em coisas alegres, não sorri; se pensa em coisas tristes, não chora. Tem fome, mas não se serve de taroou de palusami (2). O Papalagui é, regra geral, um ser vivo dominado por uma perpétua luta entre os seus sentidos e o seu espírito, um ser humano dividido em dois.


A vida do Papalagui faz lembrar um homem que vá de canoa a Savaú e que, mal se afaste da margem, pense: «Quanto tempo levarei daqui até Savaú?» E assim, põe-se a pensar, sem ver a risonha paisagem que vai atravessando. Depara-se-lhe então, na margem esquerda, o flanco de uma montanha, da qual já não mais desvia os olhos. «Que haverá ali, detrás daquela montanha? - pensa ele. - Alguma esteira ou profunda baía?» Tanto pensa, que se esquece de fazer coro com os jovens remadores; e nem sequer ouve os alegres gracejos das raparigas. Ainda mal passou a baía e a montanha, e já um novo pensamento o atormenta: «Daqui até à noite não irá haver tempestade?» E ei-lo em busca de nuvens negras no céu límpido. Pensa e torna a pensar nessa tempestade que pode vir a desabar. Não desaba tempestade nenhuma, e assim chega, pela noite, a Savaú, sem o mínimo contratempo. Foi como se não tivesse feito qualquer viagem, pois os seus pensamentos andam sempre longe do seu corpo e da canoa. Mais valia ter ficado na cabana, em Upolu.


 


Um espírito que assim tanto nos atormenta é, na verdade, um aitue não vejo razão para se gostar dele. O Papalagui gosta do seu espírito, venera-o e alimenta-o com os pensamentos da sua cabeça. Nunca o faz passar fome e não sofre por aí além pelo facto dos seus pensamentos se devorarem uns aos outros. Faz imenso barulho com os pensamentos que tem; consente-lhes que sejam mais barulhentos do que crianças mal educadas. Comporta-se como se eles fossem tão preciosos como as flores, as montanhas e as florestas. Fala dos seus pensamentos como se não tivesse qualquer valor um homem ser valente e uma rapariga alegre. Comporta-se como se houvesse um mandamento que impusesse ao homem pensar muito e como se tal mandamento proviesse, ainda por cima, de Deus. As palmeiras e as montanhas nunca fazem assim tanto barulho a pensar; se as palmeiras reflectissem tão ruidosa e ferozmente como os Papalaguis, decerto não teriam tão verdes e bonitas folhas nem tão belos e doirados frutos (pois é um facto sabido que pensar faz ficar velho e feio).E além disso os frutos cairiam, antes de amadurecerem.


Há, de resto, muitas maneiras de pensar e toda a espécie de alvos convém às setas do espírito. Que triste sorte a do homem que pensa em coisas tão longíquas como por exemplo: «Que irá acontecer amanhã, ao alvorecer do dia? Que fará de mim o Grande Espírito, quando eu chegar ao Salêfê'ê (3)? Onde estava eu antes dos enviados de Tagaloa (4) me terem dado uma agagá (5)?» É tão vã, esta maneira de pensar, como é vão tentar ver o sol de olhos fechados: não se consegue. Pois também, só com pensar, impossível se torna descobrir o que o futuro nos reserva, ou como tudo principiou, e isso logo vê quem tentar. Nunca conseguirá avançar, desde os verdes anos até à idade adulta, tal como as aves dos gelos, que nunca saem do mesmo sítio. Deixa de ver o sol, o vasto mar, a beleza das raparigas, perde a alegria, fica sem nada, mesmo nada. Até o kava perde, para ele, o sabor, e enquanto os demais dançam no largo da aldeia, ele só o que faz é olhar para o chão. Sem estar morto, vivo também não está. Foi atingido pela grave doença de estar sempre a pensar.


Na Europa, dizem que este modo de proceder torna o espírito mais aberto e sedutor. Quando alguém poensa muito e com rapidez, diz-se que é uma grande cabeça. Em vez de ter dó dessas grandes cabeças, o Papalagui respeita-as sobremaneira. As aldeias elegem-nas para seus chefes. Se houver, numa aldeia, uma grande cabeça, logo ela se sentirá no dever de comunicar os seus pensamentos a todos os presentes, que os admirarão e com eles se deleitarão. Quando uma grande cabeça morre, todo o país fica de luto e lamenta a sua perda. Talham então na rocha uma imagem da grande cabeça e expõem-na à vista de todos, no largo do mercado. Para que a gente do povo possa admirar bem essas cabeças de pedra e isso as leve a reflectir humildemente na pequenez da sua, talham-nas em tamanho muito maior do que o que na realidade tinham.


Quando se pergunta a um Papalagui: «Porque é que pensas assim tanto?» ele responde: «Para não ficar estúpido!» Um Papalagui que não pense, é considerado valéa (6), quando, na verdade, se devia ter como sinal de inteligência encontrar alguém o seu caminho sem ter necessidade de pensar.


 


Eu, por mim, acho que tudo isto não passa de um pretexto, que o Papalagui se deixa ir atrás de um mau instintoe que o verdadeiro alvo dos seus pensamentos é o desejo de descobrir os poderes secretos do Grande Espírito. Ele próprio atribui a esse desejo um qualificativo que soa bem: «investigar». Investigar, quer dizer: ter uma coisa tão perto da vista que se pode tocar-lhe e meter lá o nariz. Essa mania de querer penetrar e esquadrinhar tudo é uma paixão desprezível e de mau gosto. Ele agarra numa escolopendra (7), trespassa-a com uma pequena azagaia e arranca-lhe uma pata: «O que é que parece esta pata, assim separada do corpo? Como estava ela presa ao corpo?» E parte a perna, para ver a sua espessura. Isso, para ele, é importante, é fundamental. Tira da pata uma parcela do tamanho de um grão de areia e coloca-a debaixo de um grande tubo possuidor de uma força misteriosa, que permite aos olhos verem com mais nitidez. Com a ajuda desse grande e potente olho, esquadrinha tudo - uma lágrima, um pedaço de pele, um cabelo - tudo, absolutamente tudo. Vai dividindo todas as coisas que vê, até chegar a um ponto em que já não pode parti-las nem subdividi-las mais. Por mais minúsculo que seja, esse ponto mostra-se, em geral, de uma importância capital, pois é um limiar para o conhecimento divino, que só o Grande Espírito possui.


O Papalagui, esse, não tem o direito de franquear tal limiar, e jamais algum dos seus trespassantes olhos mágicos conseguiram descobrir o que existe lá por detrás. O Grande Espírito não consente que lhe roubem os seus segredos. Nunca ninguém conseguiu trepar mais alto do que o cocoruto da palmeira a que se agarrou; chegando ao cimo teve que parar, por não haver mais tronco a que se agarrar para continuar a subir. Além do mais, o Grande Espírito não gosta da curiosidade dos homens: é por isso que estendeu, sobre todas as coisas, grandes lianas sem princípio nem fim. Eis a razão pela qual todo o indivíduo que siga até ao fim o fio dos seus pensamentos, se vê forçado a reconhecer que nem por isso ficou a saber algo mais, e que as questões para as quais não encontrou resposta são do domínio do Grande Espírito. Assim, de resto, o confessam os Papalaguis mais inteligentes e valorosos. Mas a maior parte dos doentes do pensamento persiste na sua voluptuosa paixão; e é assim que, de mil e uma maneiras, o pensamento faz o homem extraviar-se do seu caminho - como alguém que pretendesse avançar através da floresta virgem num sítio onde não houvesse qualquer atalho aberto. Emaranhados nos pensamentos, os seus sentidos já não conseguem (isto já aconteceu) diferenciar o homem do animal. Pretendem eles que o homem é um animal e que o animal tem algo de humano.


É pois particularmente grave e nefasto que todos os pensamentos - quer bons, quer maus - sejam de imediato projectados sobre finas esteiras brancas. A isso chama o Papalagui «imprimir»; de modo que tudo o que esses doentes pensam, fica, ainda por cima, inscrito, com a ajuda de uma máquina misteriosa que obra milagres com as suas mil mãos, máquina essa que possui a determinação de muitos e grandes chefes juntos: inscreve os seus pensamentos não uma ou duas vezes, apenas, mas inúmeras vezes, um número infinito de vezes. Agarram depois os Papalaguis numa grande porção de esteiras com pensamentos, comprimem-nas em pequenos maços - a que chamam «livros» - e enviam-nos para todos os recantos do país. Quem absorver esses pensamentos ficará imediatamente contaminado, e eles ingerem essas esteiras como se fossem bananas doces. Em cada cabana há baús cheios delas a transbordar. Velhos e jovens Papalaguis roem naquilo como ratos em cana de açúcar. E assim, só alguns raros Papalaguis é que ainda são capazes de pensar razoavelmente e de ter pensamentos naturais como qualquer Samoano sensato.


Também, e consoante o mesmo método, encafuam o maior número possível de pensamentos na cabeça das crianças. Obrigam-nas a consumir todos os dias uma certa quantidade de esteiras com pensamentos. Só as mais saudáveis é que repelem tais pensamentos, ou deixam que se lhes escoem pelo espírito como se este fosse uma rede. Mas a maioria sobrecarrega de tal modo a cabeça com pensamentos, que não há possibilidade de o mais ténue raio de luz lá penetrar. Chama-se a isso «formar o espírito», e a esse estado de constante desvario, «instrução». A instrução é coisa já muito difundida.


 


Ser instruído significa: atravancar a cabeça com saber, até ela quase estoirar. O homem instruído sabe qual é a altura de uma palmeira, o peso de uma noz de coco, o nome de todos os grandes chefes de tribo e as datas das guerras que eles fizeram. Sabe qual o tamanho da lua, das estrelas, e de todos os países. Conhece o nome de cada rio, de cada animal e de cada planta. Sabe tudo, tudo, tudo. Quando se faz uma pergunta a um homem instruído, ele atira-nos logo com a resposta à cara, antes de nós termos tempo de fechar a boca. A sua cabeça está sempre carregada de munições, prestes a disparar. Os Europeus passam o mais belo tempo da sua vida a transformar a cabeça num carro de fogo o mais rápido possível. Os que tentam furtar-se a isso, são obrigados à força. Todo o Papalagui tem por obrigação, acima de tudo, saber e pensar.


O único remédio capaz de curar tão grandes doentes seria o esquecer e afugentar tais pensamentos, mas eles não exercem tal medicina. Por isso, raros são os que conseguem curar-se. A maior parte carrega consigo tamanho fardo, que o corpo se cansa, perde o vigor e murcha prematuramente.


Queridos irmãos que não pensais: depois disto que eu aqui vos disse com a maior das sinceridades, será que realmente desejareis imitar o Papalaguie aprender a pensar como ele? Por mim digo: «Não!? Pois devemos evitar tudo qunto não nos fortifique o corpo e intensifique os prazeres que os sentidos nos dão. Acautelemo-nos, sobretudo, contra tudo o que nos possa fazer perder a alegria de viver, contra tudo quanto possa ensombrar-nos o espírito, roubando-lhe a sua luz irradiante, e fazer a cabeça entrar emk conflito com o corpo. O Papalagui, com a sua maneira de viver, prova-nos que pensar é uma doença grave, que grande valor rouba a um ser humano.


 


 


(1) Árvore (N. T. P.).


(2) Um dos pratos favoritos dos habitantes de Samoa.


(3) Infernos samoaneses.


(4) O deus mais poderoso da lenda.


(5) Alma.


(6) Estúpido.


(7) Espécie de centopeia.


 


 


O Papalagui quer arrastar-nos


para as suas trevas


 


Houve um tempo, queridos irmãos, em que todos vivíamos numa noite escura, pois não conhecíamos a luz irradiante do Evangelho; um tempo em que vagueávamos como crianças à procura da sua cabana sem a encontrar, em que o nosso coração desconhecia o Grande Amor e os nossos ouvidos estavam surdos à palavra de Deus.


 


Foi o Papalagui que nos trouxe a luz, foi ele que nos veio libertar da noite negra em que vivíamos. Levou-nos até Deus e ensinou-nos a amá-lo. Veneramo-lo, pois, como sendo aquele que nos trouxe a luz, o porta-voz do Grande Espírito a que ele, Papalagui, chama Deus. Reconhecemo-lo e considerámo-lo nosso irmão, não lhe vedámos o acesso à nossa terra, pelo contrário, partilhámos com ele de boa fé todos os frutos e tudo quanto tínhamos para comer, pois nos sentíamos como filhos de um mesmo pai.


Apesar do esforço que tal empresa exigia, o homem branco suportou todos os reveses para nos trazer o Evangelho, mesmo quando nós, cabeçudos como crianças, nos negávamos a aceitar a doutrina que ele pregava. Agora rendemos-lhe graças por tanto se ter esforçado e tanto ter suportado por nossa causa, e para sempre lhe prestamos homenagem por nos haver trazido a luz.


O missionário do Papalagui ensinou-nos, em primeiro lugar, o que é Deus; desviou-nos dos nossos antigos deuses, dizendo-nos que se tratavam de ídolos, isentos da natureza divina do verdadeiro Deus. Deixámos, por conseguinte, de adorar as estrelas da noite, a força do fogo e do vento, e a partir daí começámos a endereçar as nossas preces ao deus do Papalagui, a Deus, o Grande Senhor do céu.


A primeira mercê que Deus nos fez, foi tirar-nos, por intermédio do Papalagui, todos os canos de fogo e demais armas a fim de vivermos em paz uns com os outros, como bons cristãos, pois bem conheceis o mandamento de Deus que nos manda amarmo-nos uns aos outros e não matar. É o mais importante dos seus mandamentos. Entregámos as nossas armas, e desde então nenhuma guerra voltou a dizimar as nossas ilhas e cada um respeita o próximo como um irmão. Não tardámos a perceber que Deus tinha razão em dizer tal mandamento, pois a paz reina hoje entre as aldeias que, outrora, se entregavam a terríveis, intermináveis e encarniçadas batalhas. E embora nem todos estejam eivados ainda de amor a Deus, todos se mostram muito reconhecidos por se terem tornado maiores e mais fortes desde que adoram, em Deus, o Grande, o Magno Chefe de tribo, Senhor do céu e da terra. Ouvimos com respeito e reconhecimento as suas palavras majestosas e sábias, as quais dão mais força ao nosso amor e cada vez mais nos enchem a alma do seu Grande Espírito.


Dizia eu, pois, que o Papalagui nos trouxe a luz, essa luz maravilhosa que inflamou o nosso coração e nos encheu de alegria e de reconhecimento. Ele recebeu a luz antes de nós. Já a luz o iluminava a ele e ainda os mais velhos de nós não tinham sequer nascido. Mas o Papalagui limita-se a empunhar a luz, a estender o braço para alumiar os outros, pois que ele próprio, ou seja, o seu corpo continua nas trevas. Muito embora a sua boca proclame o nome de Deus e as suas mãos arvorem a luz, o seu coração vive longe de Deus.


Nada há para mim de mais penoso, nada me enche tanto o coração de tristeza, do que ser forçado a dizer-vos isto, filhos queridos das nossas muitas ilhas; o certo, porém, é que não podemos deixar-nos enganar a respeito do Papalagui, para que ele não nos arraste também para as suas trevas. É verdade que foi ele que nos trouxe a Palavra de Deus - sem, contudo, ter entendido os seus mandamentos e preceitos. A boca e a cabeça compreenderam, mas não assim o corpo. A luz não conseguiu penetrá-lo nem reflectir-se nele, de modo a que, para qualquer lado para onde vá, possa iluminar tudo com a luz que lhe vem do coração, luz essa a que também se poderá chamar Amor.


 


Nem ele próprio, sequer, reconhece a contradição que está patente entre as suas palavras e os seus actos; mas nós, sim, reconhecemo-la pela sua incapacidade em pronunciar a palavra de Deus do fundo do coração. Quando a diz, faz uma espécie de careta como se estivesse cansado e como se essa palavra não lhe dissesse respeito. Todos os Brancos se atribuem a si próprios o nome de filhos de Deus, crença essa atestada, em esteiras, pelos chefes de tribo da terra; mas embora todos eles tenham recebido o grande ensinamento e todos conheçam Deus, Deus continua a ser-lhes estranho. Nem mesmo aqueles que foram formados para falar de Deus em grandes e magníficas cabanas construídas em sua honra têm Deus em si; falam no ar, falam no meio de grande vazio. Esses mensageiros que falam de Deus não sabem discorrer sobre Deus, falam como as ondas que vêm quebrar-se de encontro às rochas: embora ressoem continuamente, ninguém já as ouve.


Deus não irá por certo encolarizar-se com o que eu vou dizer: naquele tempo em que adorávamos o fogo e as estrelas, não éramos piores, nós, os filhos das ilhas, do que hoje o é o Papalagui. Éramos de facto maus e vivíamos no meio das trevas, porque não conhecíamos a luz. O Papalagui, esse, conhece a luz e no entanto vive no meio das trevas, e no entanto é mau. Mas o pior é que ele se pretende filho de Deus e cristão, e quer fazer-nos crer que é o fogo, só por ter uma chama na mão.


O Papalagui só muito raramente pensa em Deus. Só quando é apanhadoi pela tempestade e essa tempestade está prestes a apagar a chama da sua vida, só então é que ele se lembra que há poderes que lhe são superiores e chefes de tribo de mais alta estripe. De dia, Deus incomoda-o e impede-o de se entregar aos seus curiosos prazeres e às suas estranhas diversões. Demais sabe ele que o seu comportamento não agrada a Deus, e que se albergasse de facto em si a luz de Deus, tanta vergonha teria que se lançaria ao chão. O seu coração está repleto de ódio, de cobiça, de hostilidade, e mais parece um gancho enorme e ponteagudo, um gancho tão só destinado ao roubo, do que luz que vence as trevas, tudo aquecendo e iluminando.


E diz-se o Papalagui cristão! Cristão! Palavra doce como um belo cântico! Oh! oxzalá assim nos chamemos sempre! Ser cristão quer dizer: amar, acima de tudo, Deus Todo-Poderoso, amar os nossos irmãos e só depois amarmo-nos a nós próprios. O amor, ou seja, o proceder como deve ser - tem que correr-nos no corpo como o sangue e fazer parte de nós como as mãos e a cabeça. «Cristão», «Deus», «Amor» são palavras que o Papalagui tem na boca, palavras onde a sua língua tropeça, com grande estenor. Porém, o seu coração e o seu amor não se prosternam diante de Deus, mas tão somente diante das coisas, diante do metal redondo e do papel forte, diante dos seus voluptuosos pensamentos e diante da máquina; não é de luz que o seu coração está cheio, mas de uma grande avidez de tempo e de uma grande loucura pela profissão. Irá dez vezes ao lugar onde se simula a vida, antes de ir, uma só, junto de Deus, que longe, muito longe dele se encontra.


Queridos irmãos: se é idolatria adorar e venerar outra coisa que não seja Deus e reservar a essa coisa o melhor lugar no seu coração, então o Papalagui possui hoje mais ídolos do que nós jamais tivemos. Deus não conta com o melhor lugar no coração do Papalagui: por isso o Papalagui não age segundo a vontade do aitu. Por mim não me espantaria muito que o Papalagui nos tivesse trazido o Evangelho à laia de mercadoria, em troca dos nossos frutos e da mais bela e maior parte da nossa terra, da qual se apropriou. Acho-o bem capaz de tal, pois muita sujidade e muitos pecados descobri já no coração dos Papalaguis. Sei, além disso, que Deus gosta mais de nós do que dos Papalaguis que nos tratam de selvagens, o que significa seres sem coração, como dentes de animal.


 


Mas Deus fez cair as escamas dos olhos do selvagem e mostrou-lhe as maquinações do Papalagui. Disse Deus ao Papalagui: «Faça-se segundo a tua vontade! Já não mando mais em ti!» E o Branco foi e mostrou-se tal qual era. Ó vergonha! Ó horror! O Papalagui tirou-nos as nossas armas e, em voz tonitroante, repetiu-nos o que Deus dissera: «Amai-vos uns aos outros!» E agora? Soubestes ainda há pouco, irmãos, dessa terrível notícia, desse acontecimento contrário a Deus, ao amor e à luz: que eles, na Europa, se degolam uns aos outros! Os Papalaguis tornaram-se loucos varridos! Matam-se uns aos outros! O sangue, o terror e a devastação reinam por toda a parte! Até que enfim que o Papalagui confessa: «Não há Deus nenhum dentro de mim!» A luz está prestes a extinguir-se na sua mão; e lá vai ele, no meio da mais cerrada escuridão... - só se ouve o terrífico bater de asas dos cães voadores (1) e o piar dos mochos.


Sinto-me cheio de amor a Deus e a vós, irmãos. Concedeu-me Deus esta voz para que vos dissesse tudo quanto disse, e assim antermos a nossa força interior, sem nos deixarmos seduzir pela língua rápida e manhosa do Papalagui. Quando ele se aproximar, levantemos os braços e gritemos-lhe: «Enquanto o teu rosto for assim triste e macilento, e desvairado o teu olhar, enquanto a imagem de Deus não resplandecer em ti como um sol, cala-te, mais a tua barulhenta voz, pois as tuas palavras serão, aos nossos ouvidos, muito semelhantes ao barulho da ressaca e ao assobio do vento nas palmeiras!»


Juremos a nós próprios que lhe vamos gritar: «Afasta-te, mais os teus prazeres e os teus divertimentos, a tua desenfreada corrida atrás dos bens que podes agarrar com as mãos, como se fossem bens do espírito, o teu ardente desejo de seres mais bem visto que o teu irmão, os teus muitos actos insensatos, os gestos atrapalhados das tuas mãos, os teus pensamentos pesquisadores e o teu saber que afinal nada sabe, todas essas loucuras que te impedem até de dormir descansado na tua esteira! Nós cá não temos precisão de nada disso, pois contentemo-nos com as nobres e belas alegrias que Deus em tão grande número nos concedeu!» Que Deus nos ajude a não nos deixarmos ofuscar pela sua luz a pontos de nos perdermos no caminho; antes ilumine todas as veredas, de modo a podermos caminhar banhados por essa maravilhosa luz, e assim nos amarmos uns aos outros, e assim fazermos muitas talofas (2) nos nossos corações!


 


(1) Morcegos (N. T. P.).


(2) Actos de amor (vd. nota cap. II).


 


 






O Papalagui A primeira percepção textual do livro “O Papalagui” é nos dada pelo esverdeado da capa e pelo implante da bandeira em cima do mapa, acompanhada pelos inúmeros objectos que aparecem faccionados. Ora o texto trata-se de uma série de discursos descritivos do comportamento do Papalagui, feito através da personagem principal o chefe da tribo Tuiavii de Tiavéa, o qual é evidente o choque cultural que emerge no confronto de duas culturas desiguais, não só ao nível da sua história como ao nível dos seus valores éticos, sociais e morais. Existe aqui um conflito indiscutível entre a veneração à natureza e a devoção ao progresso, é neste ponto que todo o discurso do autor assenta: o Papalagui profana a natureza com o seu pensar e com o seu agir. Permanece um contínuo desrespeito e desprezo pelos valores mais humildes, mais simples, mais instintivos, aqueles que não provém da razão, mas sim dos sentidos. Além disso, desenraizou-se da natureza mãe para se tornar um projecto de Deus. O objectivo da obra é compreender e interpretar os motivos culturais que levam à discrepância entre a forma como nos vimos a nós mesmos dentro da nossa cultura e como o outro nos vê a nós. O olhar do outro sobre nós implica a nossa submissão cognitiva ao que o outro fora de nós consegue ver que nós não conseguimos visionar nitidamente. Além disso é bastante atraente como o outro nos confronta eticamente com nós próprios. Como as coisas mais evidentes e simples nos escapam, como temos o poder de ocultar o básico e desvendar o obscuro. O Papalagui, ou seja, o homem branco, aparece-nos descrito nos discursos do chefe da tribo com uma singeleza encantadora que nos leva a mergulhar numa complexa reflexão sobre nós mesmos e a imagem que nós transmitimos ao outro. O que somos realmente? Aquilo que pensamos de nós, a percepção que os outros têm de nós ou o que somos e não conseguimos exactamente descodificar? Estas perguntas exaltam-me o espírito, porém perceber como o outro nos vê, perturba-me e remete-me para um outro campo mais perspicaz. Aquilo que alguém tão estreitamente aglutinado à natureza descodifica da nossa essência é estranho e ou mesmo tempo remete-nos através dos seus discursos a desvendarmos a nossa inerente imagem. Este outro questiona-nos, não porque temos uma cultura distinta da dele, mas, porque ele não compreende a nossa capacidade de complicar o simples e idolatrar o complexo como desprezo automático por tudo aquilo que existe de mais simples e nos é concedido pela natureza, ou o obtemos pelo contacto com ela. É bastante curioso como o confronto entre a cultura das duas personagens é iniciada a partir das coisas mais elementares e evidentes, como onde morra, o que veste e o que faz. Este conflito progresso vs natureza que representa a perda de identidade, a parda da essência do ser em quando ser natural, resultante da mãe-natureza e coabitante não só nela, mas com ela no mundo. Em todos os capítulos do livro é notório o choque cultural que o chefe da tribo Tuiavii de Tiavéa sofreu ao entrar em contacto com o Papalagui, os seus enormes valores culturais de ligação à terra, a harmonia como ele vive em equilíbrio com a natureza, o desprendimento da propriedade e o cultivo do culto à natureza, fazerem-no feliz e não compreende como alguém em qualquer parte do mundo consegue viver sem estes princípios. Ao contrário, o Papalagui é um homem que fugiu do passado, desenraizou-se da terra, pendeu-se a mil e um laços invisíveis que o tornou mais débil e angustiado. Assim, é evidente a violenta colisão entre estas duas culturas. Este livro tem um valor muito amniótico, consegue entrar dentro de nós e penetrar a nossa essência. Embora todos saibamos que os diferentes povos têm diferentes maneiras colectivas de pensar, de agir, de sentir e que a sua herança cultural é divergente da nossa. Nós, os Papalaguis não podemos serem tão paradoxos. Teremos de adquirir um relativismo cultural onde deixe de haver raças. Temos de ver o outro como um outro diferente, contudo igual à nossa essência.